O CADERNO DA ESFINGE
Minha mãe não cozinhava nada
ou sou eu não me lembro dela na cozinha?
Lembro-me dela sentada à mesa da sala
a fazer contas horas inteiras
em seu caderno pequeno de espiral
como se fossem feitos poemas de números
cujos algarismos me eram hieróglifos
impenetráveis enigmas de uma civilização remota
tão distante como uma boca apartada do seio
Minha mãe tinha caligrafia de traços elegantes
rebuscados e requintados
era exímia na arte das letras e cifras
cujas somas jamais batiam ou se conciliavam
(1 menos 1 jamais eram iguais a 0)
Naqueles tempos alfanuméricos
de códigos, segredos e mistérios
construíamos oceanos de distâncias
ela sentada à mesa com seu caderno
e eu preocupado com as espinhas
sem ainda saber o que fazer com os pelos
os músculos, a voz grossa e os hormônios
Soubesse eu que ali cerimoniávamos adeuses
talvez tivéssemos nos tocado mais
passeado mais
brincado mais
conversado mais
e cozinharíamos macarronadas
com molhos de tomate e bolonhesa
para juntos cearmos na mesa
forrada de toalhas, talheres e pratos
despida daquele caderno de espiral
Hoje quando ela já se foi
afogada no mar de suas incertezas
e a mesa vendida em um leilão qualquer
tenho saudades do caderno de minha mãe
cujos números eu não entendia nada
Não o decifrei
e fui devorado