O CADERNO DA ESFINGE

Minha mãe não cozinhava nada

ou sou eu não me lembro dela na cozinha?

Lembro-me dela sentada à mesa da sala

a fazer contas horas inteiras

em seu caderno pequeno de espiral

como se fossem feitos poemas de números

cujos algarismos me eram hieróglifos

impenetráveis enigmas de uma civilização remota

tão distante como uma boca apartada do seio

Minha mãe tinha caligrafia de traços elegantes

rebuscados e requintados

era exímia na arte das letras e cifras

cujas somas jamais batiam ou se conciliavam

(1 menos 1 jamais eram iguais a 0)

Naqueles tempos alfanuméricos

de códigos, segredos e mistérios

construíamos oceanos de distâncias

ela sentada à mesa com seu caderno

e eu preocupado com as espinhas

sem ainda saber o que fazer com os pelos

os músculos, a voz grossa e os hormônios

Soubesse eu que ali cerimoniávamos adeuses

talvez tivéssemos nos tocado mais

passeado mais

brincado mais

conversado mais

e cozinharíamos macarronadas

com molhos de tomate e bolonhesa

para juntos cearmos na mesa

forrada de toalhas, talheres e pratos

despida daquele caderno de espiral

Hoje quando ela já se foi

afogada no mar de suas incertezas

e a mesa vendida em um leilão qualquer

tenho saudades do caderno de minha mãe

cujos números eu não entendia nada

Não o decifrei

e fui devorado

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 02/04/2022
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