A MENINA DE PALMARES

Havia uma menina

cuja infância se foi na cheia

afogada nas águas pretas

e escuras do Rio Una

Daqueles tempos molhados

carrega consigo meia dúzia de fotos

e os espaçamentos da memória

cujas lacunas completam o inteirar de sua história

Na inocência dos seus olhos

brincava com a farra das águas

assistindo do alto da casa que lhe era abrigo

junto com outras crianças que como ela

aguardava o retorno desalojado dos pais

Era uma infância úmida devorada pela fome da boca

inundada de dilúvios e pelo banhar selvagem do rio

Não nasceu dos ossos das costelas

mas da mesma argila e do mesmo barro que Adão

Por sobre as águas das chuvas e do lado

boiavam entre bonecas e tiaras

as sobras flutuantes de suas lembranças

e do vestido submerso de sua primeira comunhão

apenas sobreviveu o terço presenteado de sua mãe

No leito em que hoje dorme convivo com suas noites

e me banho todo dia me enxaguando

nos afetos encharcados dos líquidos

de seus mais profundos amores

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 29/03/2022
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