Impressões colhidas após anoitecer

Eu vi um telhado sob um gato,

o gato era negro como a noite mais escura,

levantou-se o gato manhosamente

e em silêncio sumiu noite adentro,

dissolveu seu negror na negridão da noite,

então noite e gato tornaram-se uma coisa só.

Vi um cometa permeando o céu

com sua calda luminescente,

assoviei para ele que parou e olhou-me,

fiz um pedido, ele abanou a calda qual cachorro feliz,

acho que significa que meu pedido será atendido,

e mais que depressa sumiu por entre as estrelas.

Eu vi uma lesma grudada à parede

dando vida ao adágio,

de que devagar se vai ao longe.

A lesma deixava um rastro brilhoso,

feito a cauda do cometa.

Estava tão arraigada à parede que não se podia discernir,

onde acabava a lesma, onde começava a parede.

Eu vi vagalumes faiscantes

lampejando na escuridão,

como sinapses no cérebro de um pensador.

Um apaga e acende hipnotizante,

gotas de luz na escuridão da noite.

Eu vi um trôpego bêbado andando pela noite,

como se carregasse o mundo nas costas,

ia ziguezagueando em seu solilóquio,

dando boa noite aos gatos,

pedindo licença as árvores na calçada.

La se foi, tropeçando nas perguntas

que ele mesmo fazia e respondia,

revezando-se no papel de emissor e receptor

das próprias indagações.

Vi uma coruja pousada num poste,

quando eu passava debaixo do poste,

onde a coruja se empoleirava,

eis que num voo rasante

ela me capturou um pensamento,

tomei um baita susto,

ninguém me disse que coruja se alimentava de pensamentos.

Voltei para casa embebido de impressões,

vou esparramá-las no papel,

cortar as arestas,

aparar os excessos,

e quem sabe, sobre uma poesia.