UM ABORTO INACABADO

Há algo de quase-morto dentro de nós

Digo morto, porque já nasceu com a sorte

do malogro e do fracasso como um galo

degolado antes da madrugada

Digo quase, porque continua encoberto

sob a pessoa que nos nasce sobre

os escombros de seu cadáver

(Somos todos natimortos dos sonhos

dos nossos pais)

Sou filho tanto do pecado original

quanto das incompletudes ancestrais

No útero fui embrião do porvir DNA

impreciso e incerto de quem ainda não era

No ventre, herdeiro da imortalidade

dos desejos e da consequência de suas faltas

O amanhã me pertencia bem antes do ontem

e na existência das existências alheias tornei-me

um imaginado em busca de sua própria carne

(No interior das minhas interioridades

conduzo esse tanto de anterioridades)

Há algo de quase-morto dentro de mim

Nestes versos trago resíduos do poeta de meu pai

No psicólogo, sou terapeuta da melancolia de minha mãe

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 02/03/2022
Reeditado em 02/03/2022
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