UM ABORTO INACABADO
Há algo de quase-morto dentro de nós
Digo morto, porque já nasceu com a sorte
do malogro e do fracasso como um galo
degolado antes da madrugada
Digo quase, porque continua encoberto
sob a pessoa que nos nasce sobre
os escombros de seu cadáver
(Somos todos natimortos dos sonhos
dos nossos pais)
Sou filho tanto do pecado original
quanto das incompletudes ancestrais
No útero fui embrião do porvir DNA
impreciso e incerto de quem ainda não era
No ventre, herdeiro da imortalidade
dos desejos e da consequência de suas faltas
O amanhã me pertencia bem antes do ontem
e na existência das existências alheias tornei-me
um imaginado em busca de sua própria carne
(No interior das minhas interioridades
conduzo esse tanto de anterioridades)
Há algo de quase-morto dentro de mim
Nestes versos trago resíduos do poeta de meu pai
No psicólogo, sou terapeuta da melancolia de minha mãe