Desconstrução

Sobe a casa

sobre a rua morta,

o pedreiro taciturno

constrói um sonho que não é seu.

Dá, sem atentar,

um trago no cigarro,

assenta um tijolo,

olha para o “tempo”,

será que vai chover?

Cantarola uma "moda" qualquer,

da qual não se recorda de toda a letra,

mas lembra-se da melodia,

assovia-a.

Olha no relógio as horas e se

dá conta que perdeu o tempo de ser feliz.

O sol a pino castiga-lhe as costas

uma gota de suor brota-lhe a testa

corre sem pressa pela face

galga-lhe o queixo

mistura-se a massa

empresta à massa o sal;

do ganho pouco

do esforço muito

da canseira desmesurada

da desigualdade desnuda.

Em meio à canseira recorda-se

que nem pedreiro queria ser,

mas o era o pai

antes dele o avô,

a família era grande

as bocas tantas

ele o mais velho,

não houve remédio,

foi ficando na lida

assumiu o lugar do pai

constituiu a própria família

e o tempo passando,

e passou tanto tempo

que quando parou pra contar

já tinha cinqüenta.

Queria ser piloto de avião,

mas disso quase nem lembrava mais,

foi perdendo a vontade de voar, de sonhar.

Termina o dia,

o sol se retirando,

nosso pedreiro guarda as armas da labuta,

passa no bar do Zé

pede uma pinga pra rebater a canseira,

ele não é alcoólatra,

apenas amargurado.

Toma o rumo de casa,

o cão quer festa

-alheio a sua canseira-

afaga-o com mãos grosseiras.

Beija a esposa que pergunta:

- Que foi meu amor?

Mente.

-É só canseira.

Olha as crianças a brincar,

vem um nó na garganta

e um mar aos olhos;

queria dar-lhes mais.

Na cama à noite, exausto,

ele adormece exaurido

e sonha que pilota

o avião que decola.

Mas o sonho vai durar pouco,

Logo, logo ele acorda.