Dependência
Eu confesso, meus amigos.
Sou viciado, dependente,
Não tem jeito,
Não adianta tapar o sol com a peneira.
Os rótulos coloridos dos recipientes
me encaram desde cedo
do móvel onde os guardo
num canto da sala.
As cores dos invólucros são ,propositadamente, hipnotizantes ,
Verde, vermelho,
azul, amarelo,
Nos convidam a perder a linha da sobriedade logo de manhã.
Me arrasto logo cedo até a prateleira
As Mãos trêmulas,
Os olhos vidrados
A garganta seca .
Preciso de um trago,
pra conseguir encarar o dia que se inicia,
Pra suportar as misérias existencialistas
E as hipocrisias medíocres que se apresentam.
Começo com algo mais leve
Saco da prateleira um Mario Quintana safra 1951
Sorvo com sede logo três doses seguidas,
Só pra esquentar o peito e começar a faina.
La pelas tantas um cálice de Drummond
Pra abrir o apetite, pois ninguém é de ferro.
À mesa, pro almoço um assado,
E pra acompanhar, é claro, uma taça de Adélia Prado.
Á tarde o calor aumenta e a vontade se apequena,
Preciso, meu Deus, de uma pausa apenas,
Então preparo-me um bland,
Misturo Vinicius, Gullar e Meireles,
Misturo bem e tomo gelado em goles fartos.
A noite, findo o dia, vem o jantar,
Pra abrir os trabalhos e rebater a canseira
Uma dose de Bandeira,
Já pra acompanhar a ceia
Tomo com gosto um Neruda encorpado 1967.
O dia findou-se, o sol debandou-se
As estrelas salpicam a noite de primavera,
Esse calor nos amolenta que é o diabo,
Não queria, eu luto mas o vício vence,
Pra dormir, algo mais forte,
Tomo no gargalo, no bico, uma garrafa de Bukowski.
Chamem-me de viciado, dependente,
Apontem-me o dedo
Eu não ligo,
Sou viciado meus amigos,
Admito, e não vou largar o meu vício,
Pois essa vida laboriosa não dá pra levar sóbrio,
Prefiro passá-la embriagado de poesia.
Eu confesso, meus amigos,
Sou viciado, dependente,
Não tem jeito,
Não adianta tapar o sol com a peneira.
Barman.
Desce um Eliot duplo, sem gelo.