UMA DE JOÃO SEM BRAÇO
UMA DE JOÃO SEM BRAÇO
Aqueles que fingem ser quem não são,
acabam se tornando o que nunca foram.
Dei uma de João-sem-braço.
Arracaram-m’o!
Ou melhor, tal como o famoso João, eu o escondi sob farrapos e me expus à piedade alheia. Poeta, luto o vão combate da Poesia.
Pessoa lhe fez um poema “O braço sem corpo brandindo um gládio”. E seu braço arrancado e heroico, com armadura e tudo, lhe atravessou os sonho…
Fingidor que sou, tornei-me eu um joão, isto é, algum; qualquer um.
Despersonalizei-me na persona do pedinte falso-aleijado.
Uma personagem da tacanha capital colonial. De janeiro a janeiro, um rio de ruas onde ninguém é o que é: Cariocas do caos!
Afinal, n’uma Cidade Maravilhosa não posso ser, também eu, uma maravilha?
Talvez andasse pelos arcos da Lapa declamando poemas ininteligíveis. O décimo bêbado equilibrista de hoje…
Talvez convencesse, actor sem palco, que minhas misérias merecem atenção do respeitável público…
Talvez bebesse até cair e acordasse sem calças com a cabeça na guia da calçada com o sol d’um sábado de praia m’estraçalhando as ideias com sua realidade extrema.
Não passo d'um merda. Vivo de linguiça frita e fardos de cerveja barata. Moro n'um barracão de dois cômodos, meu existensminimum… Rodo de cêgê-zinha varando a Metrópole de ponta a ponta atrás de freelas de fome! No mais, escrever feito um louco e pagar para ser lido em antologias aleatórias. Quando dá na telha, eu m'embriago e saio madrugada afora como fosse um profeta do nada: outra personagem da noite do Rio de Janeiro.
Sou
desleixado demais para ter uma mulher;
distraído demais para ter um filho;
alternativo demais para ter uma carreira.
Fui desleixado demais para ter uma mulher,
distraído demais para ter um filho,
alternativo demais para ter uma carreira.
Vivo tomando porrada na cara e me levantando para tomar mais. Sou patético.
Vou te mandar a real. Sou de Minas. Jamais estive no Rio de Janeiro em minha vida.
Tenho esposa, filhas e carreira e moro n’uma casa até boa.
Mas, na minha fantasia,
eu queria ser o merda que descrevi no poema, ou seja,
uma pessoa preocupada em viver, não em ter ou ser,
uma pessoa livre que se dedica unicamente à poesia.
Dar uma de joão-sem-braço, como se sabe é dar um golpe.
É fingir ser um aleijado para compadecer o outro e receber d’ele uma esmola.
No fundo, é isso que faço: visto-me de poeta para receber um aplauso aqui e outro ali.
Proponho-me uma autocrítica mordaz e negativa que descreve exatamente a minha fantasia: ser uma poeta que vaga pelos arcos da Lapa, embriagado e livre.
Talvez eu ame demais essa minha vida desgraçada, pedinte de aplausos por versos vãos nas madrugadas cariocas.
Mas, dou uma de João-sem-braço e faço alguém acreditar que poeto… E toda minha insignificante e solitária existência na verdade são desconfortos necessários para trazer às letras uma frase autêntica de humanidade.
Pedinte falso-aleijado sim. Mas poeta!
Betim - 23 10 2021