sou e não sou

sou deixando de ser,

sou sendo

sou e não sou

mesmo assim acordo

cedo, vou ao trabalho,

jogo o plástico no

cesto correto, cuido

da perna doída e do

peito apertado, choro

pelo mortos, inclusive

por aqueles mortos de medo,

escuto o bom e o ingrato,

tomo banho de rio e não

deixo o chuveiro muito quente,

aprecio um corpo que ainda

é corpo, a pedra tombada

as formigas que carregam

folhas cem vezes mais pesadas

que elas, ando descalso, vejo

a chuva pela janela e sol

que surra a terra depois dela,

sou e não sou, mas pago as contas

em dias, o aluguel e sempre

mantenho os pneus bem calibrados,

dou bom dia a alguns, a outros,

meu gesto mais indiferente,

assumo minha classe e o berro

que ainda guardo, amo e sou

amado, mas odeio com frequência,

gosto desse gramado que deixa

o jardim com face aristocrata,

essa árvore que sabe mais

do vendo que esse que o recebe

na cara, caminho devagar para

não perder o milagre e dou

pão seco aos peixes que me

circulam, sou e não sou, mas

vivo como uma pedra, como

um prego, como essas coisas

que duram mais que a dúvida