Da herança do sangue
Vó Maria, mulher alva
Vó Naltide* era preta
Vó Maria era casada
Vó Naltide era solteira
A primeira era católica
A segunda, cachaceira.
Dessa mistura insólita
Apareceu esta herdeira!
A casa da vó Maria
Era sempre asseada
Chão lustrado, limpa pia,
Copo e panela areada
Vergonha não fazia
Casa de mulher dedicada
A de Naltide, xi, maria!
Era suja e bagunçada.
Em matéria de beleza
Vó Natilde era sem par!
Mas era namoradeira
Cedo deu o que falar
Assunto das fofoqueiras
Não queria se casar
Conheceu o João Ferreira
Homem já dono de um lar.
Não adiantou conselho
Não teve mais solução
Só olhava para o espelho
Com seu vestido vermelho
Ensaiando a sedução
Do vô João virou amante
Quenga de homem importante
Entregue à perdição.
Depois de muita quermesse
Cachaça e diversão
A mulher nunca merece
Pra seu pecado o perdão
Com cinco filhos pequenos
Vó Naltide, ao relento
Experimentou o veneno
De ser largada sem chão.
Depravou-se na cachaça
Desgostosa de viver
Bêbada, caída na estrada
Só desejava morrer
Mãe solteira, abandonada
Com as crianças em casa
Sofrendo, sem ter nada
Sem ter Pirão pra comer.
Os Cinco filhos criou
Com muita dificuldade
Muita castanha apanhou
Pra não ter necessidade
Mas o sangue não negou
A barata qualidade
Um neta se empregou
Nos cabarés da cidade.
Vó Maria era donzela
Esperando se casar
Respeitava o nome dela
Para o povo não falar
Seu desejo mais profundo
Toda de branco no altar
Um tal de Seu Raimundo
Veio então realizar.
Respeitoso rapazola,
Com Maria se casô*
Por alcunha de Mundola
Veio a ser meu avô
Mas Maria, sem demora
Em outra se transformou
Conheceu um gabola
E o Mundola chifrou
Eis que a santa virou puta
E a puta virou santa
E no meio da lambança
Eu continuo na luta
Sou Naltide e sou Maria
Besta é quem em mim confia
Logo entra numa fria
Sou raposa velha, astuta.
*Seu nome era Matilde, mas todos a conheciam por Naltide.