Sermão do Fundo do Poço (fragmento)

Felizes os homens de língua curta,

Pois passarão ilesos pela tenaz ardente.

Felizes os vencidos pela verdade,

Pois não há derrota mais instrutiva.

Felizes os dotados de memória,

Pois saberão de cor a quem devem pagar.

Feliz o trigo na eira do tempo,

Pisado e colhido na messe do Senhor.

Felizes os ainda pecadores,

Porque é alma o que lhe ferve e congela nas veias.

Felizes os peregrinos andrajosos,

Pois deserto não há que não transforme.

Felizes os paladinos ignotos,

Que sorverão sorrindo o lírio dos campos.

Felizes os simples de coração,

Porque verão beleza nas aves por serem aves.

Felizes os que confessam o óbvio,

Oculto ao microscópio de varredura.

Felizes os cultores da ciência,

Cujos preconceitos vencerão os séculos.

Felizes os sábios pré-diluvianos,

Que estão inocentes no crime de Babel.

Felizes os que viram a grama verde e creram,

Pois seu sangue pulsa com a música das esferas.

Felizes os nascidos de mulher,

Porque serão como irmãos das coisas.

Felizes os que perdoam a felicidade alheia,

Pois se banharão nas águas curativas do Letes.

Felizes os que comem o pão da vida,

Pois não se fartarão de alegria sintética.

Felizes os que geram descendência,

Porque se assemelham ao Pai que está no Céu.

Felizes os acuados na arena ensandecida,

Porque serão poupados da fúria dos leões.

Felizes os bravos nas linhas dianteiras,

Que os excessos da luta serão exculpados.

Felizes os bobos shakespearianos,

Que espiam de canto os dramas humanos.

(...)