Entrelinhas
Queria fazer um poema modernista
com aqueles versos desarrumados
sem a métrica, sem a rima,
com a autoridade de um Drumond,
de uma Cora Coralina.
O verso reclamou:
_Livre, rimado ou não,
que importância isso tem
se eu for buscado no fundo do coração?
_Tudo bem então.
Mas abordar o que?
O poema sugeriu:
_Fale apenas do vazio, do inexistente,
do abismo profundo em que mergulha a vida,
em que se flagela o coracao.
Fale tudo isso, mas não fale em solidão.
Fale que a vida é um marasmo
e que o seu pulsar rotineiro cansa,
impacienta, desespera, atravanca,
mas não fale em desesperança.
Fale que a nossa existência
depende da nossa compreensão da natureza,
do nosso amor, da nossa devoção, do nosso empenho
em preservar a beleza,
mas não fale em utopia.
Fale da vida, das coisas corriqueiras do dia a dia.
Do culto pela imagem corporal, pela vaidade desvairada,
pela ostentação pífia, sem tempo nem idade,
mas não fale em futilidade.
Fale dos sonhos sonhados e dos sonhos realizados.
Do iluminismo perseverante
mesmo em dias tão conturbados,
sem fé, sem tolerancia, sem vigores,
mas não fale em paciência.
Fale da beleza das coisas, da beleza da vida.
De paisagem embaçada nos olhos cansados
de um idoso ou da paisagem futurista
nos olhos inocentes de uma criança.
Mostre o que pode mover a montanha,
mas não fale em perseverança.
Fale do amor entre homens e mulheres,
mulheres e mulheres, homens e homens.
Do amor sensato, como uma briga entre gato e rato,
uma rajada de vento, uma casualidade,
mas não fale em eternidade.
O amor eterno vive
liberto da impiedosa cruz.
Seus eflúvios, entretanto,
formam, ao seu derredor
uma aura de luz benfazeja,
que alumia a mente do poeta
e o desafia a essa conversa de coração.