Somos meramente mortais. Foi-nos vedado

- I -

Somos meramente mortais. Foi-nos vedado

ler grande parte do Livro da Criação;

mistérios há que, além de nossa compreensão,

ao homem deixaria penitenciado.

Curiosíssimo, porém, sai à caça infinda

o homem com uma pena querendo voar.

Sobre um papel em branco, tinta vai chorar,

e, com seus olhos baços, dizer que está linda.

"Sim, está linda a tinta que pus no papel,

talvez pareça a do Livro da Criação.

Tamanha a dor senti que não pode ser vão

o ofício de escritor — a pena toca o céu."

Assim, como quem caça borboletas tantas,

saem homem e rede a correr pradarias;

quer sentimentos — tragédias ou alegrias —

e, a cada nova borboleta, mais se encanta.

"Ó mulher, também percebes como são belas

as cores que a tinta negra pode pintar?

Somente o belo, o sublime, o que faz chorar —

o canto dos pardais e os saltos das gazelas."

"Nós mortais, que atados ao tempo somos feitos,

podemos ainda escrever como imortais;

na língua somos ubíquos e sem rivais;

fizemos a Bíblia e Deus fez-se satisfeito."

"Que um poeta, então, te dedique o seu amor,

é como pôr-te no Livro da Criação:

abre o peito ao papel, carimba o coração —

em seu sacrifício ele eterniza o fulgor."

"E talvez a isso seja feita a mulher:

para pingar na terra as páginas que faltam.

A Verdade se esconde nos olhos que assaltam,

nos olhos de mistério — no olhar da mulher."

- II -

Um dia, desejando compor certo verso,

não pude concentrar-me, pois estavas linda.

Mas não te preocupes — serás sempre bem-vinda,

não importando o tempo ou lugar no universo.

Então,

pensando em ti ao ocupar-me de poesia,

o útil ao agradável desejei juntar —

algum soneto resolvi lhe dedicar

no qual a algo belo e uno a compararia.

"Uma rosa!", pensei — mas eu me espetaria

com seus cruéis espinhos a lhe circundar.

(E tal chavão dos versos, já tão milenar,

talvez de tão banal a ti magoaria).

"Um anjo!", pensei — mas tocar não poderia,

com seu corpo de luz que não se pode amar.

(E tal chavão dos versos, já tão milenar,

talvez de tão banal a ti magoaria).

"Uma estrela!", pensei — mas distante estaria,

e há tantas iguais pelo espaço a flutuar!

(E tal chavão dos versos, já tão milenar,

talvez de tão banal a ti magoaria).

"Uma fada!", pensei — mas que fada haveria?

Não há fada madrinha nem fada do mar.

(E tal chavão dos versos, já tão milenar,

talvez de tão banal a ti magoaria).

"Uma rainha!", pensei — porém qual seria?

Nenhuma rainha houve tão bela ao olhar.

(E tal chavão dos versos, já tão milenar,

talvez de tão banal a ti magoaria).

"Uma mulher!", pensei — e, de fato, o faria:

um soneto a mulher para te comparar.

(Tamanha lei dos versos, de tão milenar,

se eu bem compusesse a ti sei que encantaria).

- III -

Quando vos toco as mãos, ai, céus, não creio:

como as minhas não são nem como as de meu pai.

À garganta, revela-se um anseio

de aos joelhos estar servil. "Ficai!"

Quando vos sinto o cheiro, não o nomeio

senão com vosso nome e com meu "ai"...

Quando vos ouço a voz, é um gorjeio

que canta, e canta, e canta e não se vai.

É como nas histórias, ou nas lendas,

de doidos "bem-me-quer ou mal-me-quer"

nas quais, nunca em razão do que se entenda,

morrem por uma pétala qualquer.

Sim, eu sei o que sois; por fé tremenda,

eu creio que estou ante uma mulher!

17/05/2021

***

Poema feito a partir de fragmentos generosamente enviados por Galaktion Eshmakishvili.

Malveira Cruz e Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Malveira Cruz em 18/05/2021
Reeditado em 20/05/2021
Código do texto: T7258783
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