FÉ FALANDO DA FÉ
Perguntaram pra fé o que era a fé,
quiseram saber onde morava, o que sentia, por onde andava,
quiseram entender seus cheiros, vozes, gostos, cor, tudo.
A fé ficou desconfiada, assustada, trêmula, ressabiada,
pois sempre a tiveram plena, inacessível, absoluta,
era algo tão certo, tão definitivo, tão divino,
que colocá-la na berlinda, na suspeição, na dúvida,
era ultrajante, absurdo, inconcebível, aterrorizador.
Mas o homem por vezes quebra regras,
por vezes quer remexer no perfeito,
por vezes quer romper fronteiras, bagunçar o jogo,
destituir o rei, o chão, o vento, a luz.
Então a fé abriu seu manto, desarmou as guaritas,
esqueceu mandos, percalços, amarras,
esqueceu o DNA, a âncora, o feitor, o medo, o tudo.
Sou um amontoado de cânticos, de retalhos, disse ela.
Sou o sumo bizarro do que já se criou, ousou, obrou, esmigalhou,
sou a nata das aberrações, das maravilhas, das rebarbas, das travessuras,
sou o verso, o açoite, o gozo, o vendaval, a cortina,
sou o ardor, a alegoria, o pântano, a paixão, a gosma,
sou a voz, a câimbra, a sombra, o não, o porém, o torpor,
sou o tempo, o suor, o infinito, a farsa, a graça, a traça, a praga,
sou o dito, o duto, a vírgula, o escudo, o parrudo,
sou o capacho, a oca, a pegada, o aplauso, a fome, o aceno,
sou o amargo, o temido, o sonhado, o amaldiçoado, o ungido,
sou o talvez, o quem sabe, o arremate, o tombo, o vão, o porão,
sou a raça, o travesseiro, o desatino, o engodo, a voz, a porrada,
sou a mágica, a beleza, o guerreiro, a fome, a dor, a alça,
sou o galope, a sinfonia, o desespero, a canção, o sonho, a senzala,
sou o veneno, a sobremesa, o saci, a vida, o trono, o avesso,
sou a revoada, o suculento, o afago, a inundação, o fim, a canoa,
sou o câncer, a traquinagem, o deslumbramento, a rima, o resto,
sou a verdade, o assovio, a espera, o amém, o quem sabe,
sou o ninguém sabe, o ninguém tem, o ninguém espera, o ninguém vê,
o ninguém tem, o ninguém tece, o ninguém estanca, o ninguém será.