BENDITAS MADRUGADAS
As madrugadas deixam a inspiração mais saliente, mais travessa,
parece que todos os nossos poros se juntam numa mesma melodia,
parece que o coração vai na beira do palco pra cutucar a plateia de perto.
O silêncio das madrugadas acaricia, embala, seduz,
nessa hora em que os ruídos dormem, ideias não amotinam,
não se enfezam, param de ranger, de girar em falso.
Nas madrugadas posso buscar meus anjos e demônios,
posso remexer em passos dados, em suores ungidos,
posso trazer à tona os louros, rasgos, rebarbas, brilhos,
o que bem entender.
Vejo a madrugada como cúmplice fiel,
dando alforria pra alma ficar pelada, temperada, atiçada,
deixando o viço da vida estrear só pra mostrar seus ossos, seu chão.
Se um dia as madrugadas não mais me quiserem,
se me caçarem o direito de escrever quando todos sonham,
se sumir aquela fagulha que faz jorrar palavras sem cabresto,
sem engasgo.
Só me restará desistir de respirar, de olhar, de caminhar,
virarei um ermitão tresloucado e senil,
virarei um grão de areia no deserto das sombras, do nada.