AM/PM
amanheceu sem que eu percebesse
um risco de luz se espremia por um orifício insignificante
em umas das folhas da janela
e através dele eu pude ver a poeira suspensa no ar
levantei-me a contragosto desejando naquele momento uma
enfermidade que me pusesse de cama pelo manos por mais duas horas
procurei dores pelo corpo resistência nos nervos pontadas nos ossos
mas nada
são como um leão mas espiritualmente ali com os roedores
escovei os dentes lavei o corpo comi um pão cuspi um café
velho xinguei em voz alta vesti a camisa apaguei a luz da sala
bati o portão amaldiçoei o sol e lamentei a vida
sentado no concreto duro dquilo que se dizia banco no ponto
de ônibus com o sol me amaldiçoando de volta com labaredas
nos meus olhos e o meu corpo a suar arruinando a camisa antes
que alguém interessante me lançasse olhares
como se alguma vez alguém interessante já tivesse me lançado olhares
o que de fato ignoro pois não lanço olhares pois há muito tempo ninguém
me é interessante a ponto de eu lançar olhares para depois colher olhares
numa espécie de jogo tolo e enfadonho
da mesma família desse que jogo agora de me equilibrar no coletivo
cercado por zumbis banhados em perfume doce falando consigo mesmo
num dialeto que não distinguo algo como português violado gírias modernas
e uma irritante necessidade de coroar tudo com um gerúndio nefasto
visto do espaço sou aquele ponto branco a bola de isopor soprada pra lá
e pra cá sem rumo mas com hora certa pra chegar e deixar de ser bola de isopor
para virar um lingote de aço pesado imóvel e mudo largado numa cadeira
diante de uma atividade insuportável que me faz querer morrer ali mesmo
anoitecia sem que eu percebesse
a luz mate do fim da tarde rebatendo no papel como um convite
de resgate divino e recompensa por mais um dia de dolorosa existência
através dela eu pude ver a poeira suspensa no ar