BEGÔNIAS
como não havia mais nada a fazer
ela sentou-se na beirada do sofá, quase caindo,
à maneira das pessoas que tem pressa.
coçou a cabeça e tirou da cartola, ou melhor, da alça
do sutiã, um cigarro amarrotado de filtro amarelo,
que ela provavelmente serrara de alguém já que
jamais a vi fumar daqueles.
aceso o cigarro com fósforo, ela pôs-se a meditar
sem tragar
a taturana cinza desafiando a lei da gravidade quando veio o
primeiro trago, entre tabaco e filtro, amargo.
como ainda não havia nada a fazer
ela tomou para si a ingrata tarefa de remover uma mancha
de café quase invisível no braço do sofá,
uma mancha do tamanho de um tremoço, um pouco mais
escura que o tecido encardido
que ela esfregava vigorosamente com o dedo molhado
em saliva, depositando na macha toda raiva que acumulara
por anos e anos de cativeiro.
a mancha provou ser mais forte e ali permaneceu, inabalável,
dizendo em voz alta que uma vez lhe dada a posse do terreno
nem o mais poderoso alvejante haveria de desterrá-la
como agora já era tarde para se fazer alguma coisa
ela ligou a TV
cochilando nas notícias mas bem desperta nos comerciais
que vendiam uma vida que ela até então não conhecia
de parques e águas e morangos enormes e corpos divinos.
fitando a mão magra, porcamente tatuada com um triângulo
azulado que um dia teve a intenção de ser uma nossa senhora,
ela chegou à conclusão de qu era tudo mentira ou tudo verdade
bastando saber qual doía menos
sentiu-se sufocada e, como não havia nada mesmo a fazer,
levantou-se para aguar as begônias.