O ENIGMA
notei que anotaste algo
no verso do punho imundo
da manga de tua camisa
talvez uma senha de banco
ou as iniciais de alguém
eram três letras à caneta
desalinhadas
mais três números feios
um cinco, um borrão, um quatro
não sei dizer de quando eram
me foge à ciência
se eram recentes ou se não lavas a camisa
mas coisa certa é
a caneta não estava boa
e a passaste na língua para que escrevesse
pois a coluna da primeira letra, meu deus,
largou-se no tecido como obra de pombos
e à medida que as letras avançavam
o rastro tornava-se cada vez mais fraco
tanto que último o último número me pareceu amputado
coçou-me a língua mas achei de bom tom não perguntar
mas teu punho imundo roubou o pouco de sobriedade
que me restava
invadiram-me a mente aqueles caracteres gravados em branco escuro
sombreados pelo roçar incessante do tecido contra teu pulso magro
hirsuto, sem relógio, de veias saltadas e psoríase
com o cotovelo bicudo apoiado na mesa, falavas com os dedos
- tenho hojeriza de quem fala com os dedos -
mas falavas tão bem com eles que julgo serem poliglotas
o indicador longo e fino, coroado por uma unha velha, estriada,
curtida em nicotina
o dedo médio cuja ponta decepada o deixava menor que o anelar
o anelar sem anel
o mínimo com a unha enorme,esmaltada, boa para tirar decalques
a manga sem botão, o punho flácido, pendente
aquele enigma.