VOLTANDO PRA VIDA
O dissabor veio quieto, camuflado,
com passos opacos, singelos, rasos,
e se fez alvorecer em mim.
Aquele afago esquisito embriagava,
entorpecia o gosto, o cheiro, o tocar, o ser,
se dizia dono do meu chão.
E era mesmo.
Então me percebi recluso nesse tom,
me sentia desarrumado, afrouxado na raiz,
cabisbaixo no caminhar, no aprumar.
Então me senti espanado na alma,
órfão de luz, de rebento, de paixão.
Foram dias engarrafados, quebradiços,
tempos que pareciam nunca se cansar,
tempos que quero chutar pra longe do longe.
Me untei num sofrimento atroz,
num caldo encardido de desacordes,
num trotar que doía tanto que esquecia da dor.
Chorei tanto que me encharquei de choros,
um choro surrado, maltrapilho, desacreditado,
desanuviado, puído mais que tudo.
Daí o tempo foi ficando com dó do meu viés atroz.
Daí o tempo, até então enfarpado, deu trégua,
pediu perdão, pediu arrego.
Então, pouco a pouco, fui reavendo meu suor,
minhas garras, meus trunfos, meu jogo todo.
Aquele trapo se refez gente,
aquele cara morto começou a balbuciar vida.
E pude, daí, chamar de volta o rio que teimava em escapulir,
trouxe cada teco de mim pra toca,
o sangue desempedrou, a voz limpidou,
o sentido ergueu seu manto,
a fé reassumiu sua lida,
e pude, finalmente, voltar à vibrar,
como sempre tanto quis,
como sempre tanto mereci,
amém.