AQUELA CASA
aquela casa eu comparava a um corpo.
a sala, coração e o quarto, pulmão,
a cozinha aquecia como ventre de gestante
e a latrina fazia jus à digestão
janelas de olhos verdes agudos
ciliados por palmeiras desbotadas
plantadas em latas de fertilizante
enferrujadas
a água salobra correndo pelos canos velhos
me fazia pensar num sangue quase leucêmico
que, com muito custo, levava a estrutura
filtrado por rins inoperantes
portas branco-cinzentas sem chaves
incapazes de resguardar qualquer intimidade
dopavam-se do alcalóide da noite
para permitir ousadias e suas variedades
o cheiro de cera nova sobre tábuas velhas
saturando cada poro daquela decrépita pele amarela
ainda hoje ressurge quando, sonolento,
escapa-me a mente em direção àqueles anos
quem era eu naquele corpo?
talvez o rebento renovador desnudo
ou o impúbere doutor de chagas insistentes
e feridas purulentas esquecidas num criado-mudo
aquela casa eu comparava a um corpo.
a sala, coração e o quarto, pulmão,
a cozinha aquecia como ventre de gestante
e, talvez, o cérebro fosse o porão