O bem amado
Uma gota d’agua escorre da torneira
Logo em seguida outra gota cai
O cachorro saliva no almoço de domingo
Acalmo-me
Sinto o frescor do momento me engolindo por completo
Gota por gota a pia da cozinha enche e transborda
Gota por gota o amido é umedecido na avidez do tempo
O relógio marca um minuto para às treze horas
A cada minuto que passa um lampejo a menos de vida
A cada lampejo de vida uma lembrança a mais me assola
Corto cenoura, pepino, tomate, com a maestria de um chef a la carte,
regado a azeite, vinagre, sal...
gotas de sangue coagulam este esplêndido trabalho
Hoje o jantar sairá tarde
Um minuto a mais é o que peço
O ritmo se parte em cristal quebrado e os cacos,
ah malditos retalhos,
Vão desafio da própria morte
O jantar está pronto
Mesa posta, todos sentam ao seu redor
Dez maneiras de subjugar um rosto,
ou menos três de querê-lo para si,
é matemática de quem não sabe contar
Palavras escassas,
olhares atentos
corpos infantes: hora de comer!
A ingestão e digestão dissolvem todo o silêncio do local Ouvem-se grunhidos de prazer da massa de famintos
Há cenas de sexo explícito na frente do espelho
Corpos nus,
pêlos expostos ao relento,
línguas deslizam sobre a pele tenra e úmida do peru
e o cheiro morno da carne sendo devorada me embrulha o estômago
Passo mal
Sou obrigado a sair da mesa
Distancio-me das impurezas do ambiente
e vomito todo meu tédio sobre a cidade.