O bem amado

Uma gota d’agua escorre da torneira

Logo em seguida outra gota cai

O cachorro saliva no almoço de domingo

Acalmo-me

Sinto o frescor do momento me engolindo por completo

Gota por gota a pia da cozinha enche e transborda

Gota por gota o amido é umedecido na avidez do tempo

O relógio marca um minuto para às treze horas

A cada minuto que passa um lampejo a menos de vida

A cada lampejo de vida uma lembrança a mais me assola

Corto cenoura, pepino, tomate, com a maestria de um chef a la carte,

regado a azeite, vinagre, sal...

gotas de sangue coagulam este esplêndido trabalho

Hoje o jantar sairá tarde

Um minuto a mais é o que peço

O ritmo se parte em cristal quebrado e os cacos,

ah malditos retalhos,

Vão desafio da própria morte

O jantar está pronto

Mesa posta, todos sentam ao seu redor

Dez maneiras de subjugar um rosto,

ou menos três de querê-lo para si,

é matemática de quem não sabe contar

Palavras escassas,

olhares atentos

corpos infantes: hora de comer!

A ingestão e digestão dissolvem todo o silêncio do local Ouvem-se grunhidos de prazer da massa de famintos

Há cenas de sexo explícito na frente do espelho

Corpos nus,

pêlos expostos ao relento,

línguas deslizam sobre a pele tenra e úmida do peru

e o cheiro morno da carne sendo devorada me embrulha o estômago

Passo mal

Sou obrigado a sair da mesa

Distancio-me das impurezas do ambiente

e vomito todo meu tédio sobre a cidade.

Alan D B Mello
Enviado por Alan D B Mello em 21/08/2020
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