Caminhadura

Caminhadura: Neologismo cunhado por Gilberto Gil, a quem peço emprestado, por não encontrar termo que melhor se encaixe.

Desde aos 6 eu soube:

O mundo não é lugar seguro

A vida não tem nada a ver com a "maria-mole" e nem com os "suspiros" da venda na roça do vô e que alegraram a minha "breve" infância, do qual eu tenho memórias remotas e extremamente afetivas.

E foi lá mesmo, na casa do vô

Onde eu aprendi prematuramente sobre a vida ser: caminhadura.

Breve infância e tendo nascido fêmea.

Estava posto, feito sina: a caminhada seria dura.

E diferente não pode ser.

Iniciada precocemente nas tantas durezas da vida.

Aprendi com os golpes duros na alma.

Fiz o que pude para não perder o saber nato de apreciar as delicadezas, sutilezas e miudezas da vida-dura-vida.

Trago na pele as feridas marcadas a ferro.

Que agora aprendo a acolher e aceitar que fazem de mim inteira.

Se as ignoro, me faltam partes.

Se as acolho, estampo o estigma.

Que sempre chega antes de mim onde quer que seja.

Seja pelo instinto.

Sejam pelos mecanismos de auto-protecão.

E foram estes que me fizeram sobreviver.

Me manter viva e caminhante foi e continua sendo transgressor. É contrariar as expectativas.

E portanto: os expectadores.

Subverti a lógica.

Me esforçando além do usual.

Nenhuma segurança me foi oferecida.

A caminhada? Dura.

Não contente, na verdade triste, muito triste, apesar das dificuldades e durezas, dei cor ao meu mundo cinza.

Ainda tinha algo de bonito.

O meu olhar triste ainda conseguia, com muito esforço, ver beleza em algo da vida-dura-bela-vida.

E nisso me concentrei.

No papel me debrucei.

Fui buscando significantes.

A música.

As flores.

O céu.

O sol.

A lua.

Os livros.

A escrita.

Tudo isso me salvou.

O olhar foi desentristecendo.

Ganhou novo filtro.

Recuperou as cores, vivas e vibrantes.

O sorriso amarelo já tão esquecido, tímido, foi se fazendo presente.

A segurança inexistente, tratei logo de me garantir.

Os estigmas se tornaram uma camada resistente da pele.

Pra além da dor, transcendem e dão lugar ao orgulho da força forjada do nada.

O abismo é atrativo para quem está condicionado, ele só não contava com meu desinteresse pelas coisas fáceis e usuais e pela minha recusa as condições predispostas.

Eu estou sempre a recusar.

Tudo isso não me faz, está contido em mim.

Eu sigo ajeitando elegantemente minha postura.

Recuso o título de sobrevivente.

Meu único título é o meu nome.

E é a ele que eu chamo.

E quando eu chamo...

Sou eu quem venho em meu favor.

E daqui, do meu observatório particular, constato:

O caminho continua duro.

Eu é quem não me permito endurecer.

Mariany Mendes
Enviado por Mariany Mendes em 25/07/2020
Reeditado em 25/07/2020
Código do texto: T7015944
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