FOME
Fome de céu
Fome de atenção
Fome de sentir fome quando os sentidos pairam ante a morte
Fome de vida perante o caixão lacrado cujo conteúdo é o cheiro do seu travesseiro
Fome de morte quando a vida vira um incenso fedido
Fome de caos
Fome de juventude na velhice precoce
Fome do teu e do meu
Fome das justificativas tão úteis no inverno e tão ridículas no verão
Fome de ser antes de poder
Fome de aprender sem conhecer
Fome do canibalismo tão em moda
Fome da antropofagia tão esquecida
Fome de ser e foder, fome de querer e nunca poder
Fome de tempero e não de acúmulo
Fome de quebrar e anseio de rasgar...
Os céus, a temperatura e o cosmos em toda sua malha infinita...
Fome de gerir e ser profundo
Fome da marmita quente com muita pimenta degustada debaixo da sombra da árvore
Fome dos insultos tão gentis que recebemos quando pouco estamos preparados
Fome de ver o mundo sob um monóculo e aceitar que o código binário é a única lei da humanidade
Fome de compor canções tão cálidas e desesperadas quanto a pior ressaca após o enterro de quem se ama
Fome de crepúsculos e chuvas ininterruptas
Fome de poemas que façam sentido
Fome da fome, fome do meio-dia
Fome da velha razão sacrossanta
Fome dos sintetizadores e do neon em cada esquina
Fome de calar e vociferar em termos iguais
Fome da desgraça pestilenta que varre a vida e concentra seu canal nas veias de quem pouco andou nos caminhos de ambas...
Fome de fé e redenção
Fome de cânticos elevados e hinos amaldiçoados que serão entoados por todo o sempre e que eventualmente não ouvirei...
Fome de ser, de ter, de haver, de fazer, de saber
Fome de concluir, de satisfazer, de abdicar...
Fome de viver.