Safra de estrelas
Pelas ruas eu andei sempre a cantar
e assim eu fiquei bem conhecido
diverti-me nos serenos das vielas
e nas praças já sonhei adormecido
No cinismo e no álcool convivi
a mentira esta foi me rodeando
das mulheres ganhei cheiro e luxuria
e os homens só viviam me roubando
As estrelas brilhavam toda noite
já a lua as vezes se escondia
eu por certo surgia embriagado
toda noite eu assim aparecia
Ao chegar o clarão de cada dia
as mulheres sumiam num instante
as calçadas essas sim me recebiam
como um reles e nojento visitante
Nesse tempo quase nada me restava
só a noite me servia de escola
eu cantava e dançava desprezado
pra ganhar alguns goles por esmola
Os meus trapos eu mesmo remendava
com as linhas que catava pelo chão
costurando devagar os meus apertos
que rasgavam os panos do coração
Vez por outra recebia um auxilio
um sapato ou um prato de comida
era mesmo que cachorro vira lata
que latia sem ninguém lhe dá guarida
Senti frio senti sede vi a morte
abracei a inveja e a porfia
levei grito, levei tombo levei chute
de uma dor que por gosto me batia
Muitas vezes os meus dedos fedorentos
nos bordões da viola soluçavam
quem ouvia aplaudia sorridente
as tais notas que gemiam e choravam
Solitário aprendi não ter ciúmes
pois ate de mim mesmo esquecia
se chorava era só porque a vida
do meu pranto só zombava e sorria
Os estranhos me travavam o caminho
e os outros inflamavam meu orgulho
a fadiga inclinou-se nos meus ombros
como fera me jogando no entulho
A fumaça da tormenta cangaceira
baforou nos meus olhos o fracasso
sem viola sem moeda e sem verso
virei cinza de tristeza e cansaço
Minha língua não sentia os sabores
os meus lábios beijavam a ironia
minha carne muito pouca quase nada
com vergonha os meus ossos escondia
Numa noite como tantas que passei
uma safra de estrelas floresceu
e a lua que as vezes se escondia
dessa vez reluzente apareceu
As pessoas que passavam nem sabiam
que as almas dos astros ali eu vi
minha alma foi nas almas desses astros
e assim fumaçando eu morri
Onde estou se estou o que importa?
as verdades são pequenas para vê-las
se alguém me procura há de me ver
nas alturas entre safras de estrelas.