sentinela
eu tenho testemunhado esperanças sem homens
levantando imensa névoa ofuscando o futuro.
eu tenho sentido o tremor de estômagos ácidos num céu bonito.
eu tenho sentido o peso imoral das calçadas cheias de abortos.
abortos que gemem incessantes privações e nada sabem
de seus eixos atados a um gozo social muito seleto e conservador.
eu tenho visto imensuráveis papéis expropriando meu povo de sua riqueza.
inumeráveis papéis que se parecem com democracia,
com o sol e com muitas terras para todos,
mas se eu pudesse os transformariam em flora para as faunas.
meu povo foi transformado em periferia
e programado para sonhar com o paraíso.
estou cansado de ver rotinas e guetos vagando pelas ruas.
ruas que assentam como pode o meu povo vilipendiado.
muitos endereços foram apagados.
há muita afetação por causa da criança esmagada
com os pesos privados necessários sobre seus pulmões e estômago
para um burguês se sentir feliz.
eu tenho visto práticas de heroísmo e santidade
em partilhas muito escassas de pão e arte entre meu povo.
tenho visto línguas egoístas induzirem meu povo à resignação.
enquanto elas mesmas se deleitam vaidosas no excesso, no desperdício.
bocas mortas agradecendo um deus morto.
eu tenho visto máquinas de guerras se consolidarem
em letíferos calibres conjurando a lágrima e o sangue
nas vielas irregulares e infinitas em que minha gente luta.
afugentando ainda mais a esperança que já migra para um estranho vazio.
eu tenho visto peles escuras (meu povo inteiro) voltarem aos troncos.
eu tenho visto o ódio disfarçado de sol
tentando escurecer o amor de uma fuligem padrão e religiosa.
eu tenho visto o mundo desabar numa vertigem patológica
sobre os ossos frágeis da minha gente,
até suas costelas se romperem e virar adubos para jardins capitalistas.
eu tenho visto centelhas se levantando a fim de clarear
e aliviar a opressão esmagando minha gente.
eu tenho tentado não chorar o apagar dessas centelhas.