Coração Comerciante

Meu afeiçoado pai,

Precocemente nascido,

Aprendeste a dançar assim,

Esquivando-se,

E a comer pão,

E a ouvir música,

Ignorando o tempo tomado.

De teu comércio,

Há vista para automóveis

Recém saídos de páginas de revistas

E mulheres e homens batizados,

Para o vaivém central

Das vidas de tua cidade.

Corres os olhos pelas mulheres

E pelas multidões pavimentadas?

Vês os anúncios em carros de som

E pões-te a sonhar?

Vais jogar mais uma cartela,

a ver se ganha o prêmio em dinheiro!

Sempre o prêmio em dinheiro alimentou-te!

Resvalaste rapidamente pelo tempo

Com teu comércio e tua marquise

— ainda que sem o prêmio —

E os cabelos encaneceram

E a voz encaneceu.

Não falamos mais o mesmo dialeto,

Não é, mesmo?

Ocupaste-te com tuas venalidades

E tua alma gastou-se a cada negócio.

Entristeceram o teu coração comerciante?

E no final de um mês,

Há sempre o começo de outro;

E ouves no rádio o ganhador,

De outra cidade, nunca tu,

Escutas tudo de passagem,

E lês notícias nos assuntos de teus clientes.

Mas não compreenderás, meu pai,

O quanto tudo me angustia,

E o teu coração comerciante, pai!

E o meu coração, quanta agonia!

C Carvalho
Enviado por C Carvalho em 16/06/2020
Código do texto: T6979305
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.