O olho esquerdo

Há segredos que não podem ser revelados,

jamais, em hipótese alguma.

Estas pernas desnudas me apavoram.

Preciso vestir aquela calça de moletom,

à vontade, bem larga.

Mas não este short.

Minhas pernas guardam muitos segredos.

Cheiro de travesseiro novo –

não sei por que – me conforta.

Travesseiro afundado sob esta cabeça

velha e doente de mim.

Mas um cão morrerá.

Morrerá de eutanásia.

Patas trêmulas, ossos destacados, edema, anemia,

câncer, costelas que sobem e descem, defecar

sangue enlutado. Valetudinário com nome.

Fito-o pela última vez (e a sua? Quando será?).

A voz de Sinatra que o sol faz luzir e o infeliz cão

não pode esgueirar-se.

Eu não devia te dizer, mas...

Tresanda carniça ao som dos mosquitos arautos.

Sim. Chegou. O dia. Quase lá.

Devagar a respiração finda.

Aproximo-me do olho esquerdo negro.

No fundo –sutil – acho um tom de azul mais escuro

que a escuridão. Mais nada.

A garrafa térmica firme na mesa de mármore. Minhas mãos

trôpegas giram a tampa e uma gota escorre e pode manchar

a toalha amarelecida após o café encovado em minha

caneca Harley-Davidson.

Minhas coxas pesadas, as mãos.

Um pacote de carne malpassada.

A vida é inevitável.

Queria o pouso desses aviões

que passam constantemente por este bairro.

Queria o pouso de um samba, romance,

regozijo que chegasse como corisco!

Aproximo-me do olho esquerdo.

A vida é inevitável e o que há é o regozijo

quando estralo os dedos que não podem impedir

a inundação de fascínio e medo vespertino

a abranger o mundo todo.

Há segredos que não podem ser revelados.

O cheiro de vida doente de mim – sei por que – me conforta.

Rememoro o olho esquerdo negro mais escuro que a escuridão.

Um cão está morto.

Espanta-me o olho esquerdo.

Um pacote de carne malpassada.

Seca-me o instante que antecede

o estrondo silencioso e constrangedor do fim.

André SS
Enviado por André SS em 13/06/2020
Código do texto: T6975997
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