Maria

Eu tinha doze anos e aparelho na boca,

usava calças largas e coloridas,

ainda tomava sorvete me sujando toda,

ao dormir, medrosa, rezava ave-marias.

Esqueci por muito tempo,

talvez meio amortecida,

mas agora lembro:

foi naquele verão que conheci Maria,

que não era mãe de Jesus, era diarista.

Maria era amiga da família,

fazia bolo de fubá com goiabada,

e falava mal das cunhadas,

como todo mundo que eu conhecia.

Ela, que tão normal era,

me contou uma vez, escondida:

Tinha o sonho de ser poeta,

e, mostrando seu caderno surrado

me apresentou à Poesia.

Pra mim, ela havia se transformado,

e eu também. Éramos três, então, muito unidas.

Eu escrevia à tarde, aos sábados

Maria aos domingos revisava,

brincando: ''o poema tem que ser desinfetado,

talvez seja a coisa que eu mais gosto de lavar'',

arrancava vírgulas e jogava na máquina,

estendia frases, botando pra secar.

Dizia pr'eu parir uma escrita suja,

barulhenta, feitas sem pensar muito,

que nem seus filhos, Gabriel e Lucas.

Mas depois eu arrumaria tudo,

como ela fez e como fazia

na casa dela e na casa das patroas ricas.

Maria me ensinou várias coisas além dessa,

até porque saber corrigir-se não é só matéria de poesia,

é da vida.

Ela envelheceu, eu também,

Mas eu fiquei e Maria fugiu pra Curitiba,

escapando de um marido de quem era refém.

Talvez se a gente pudesse desinfetar o tempo,

deixando-o como novo, como antes...

Mas e se assim acabasse mais cedo?

Com suas engrenagens brilhantes,

fique mais azeitado, girando e girando...

Liguei pra Maria depois de alguns anos.

Disse que ainda escreve,

sai do banho correndo,

anota em papel higiênico,

celular, nota fiscal,

se não esquece.

Escreveu um livro

(ainda sem final).

Continua limpando casa, peixes, poemas,

amaldiçoou as cunhadas e o marido,

substituiu seus sonhos pelos os dos filhos,

''Os dois estão na faculdade'', disse ela.

Deu pra ouvir pelo telefone o seu sorriso.

Combinando de trocar textos, nos despedimos.

Desligo e sento-me à escrivaninha,

limpando a sujeira da minha escrita.

Hoje não rezo mais, nem por medo,

mas murmuro palavras de bênção à Maria,

ausente da literatura, mas de letra límpida.