Você não é
Você não é o que escreve,
o que lê,
muito menos isso que você vê no espelho
enquanto torce o nariz.
Você não é o que um estranho cigano disse que seria quando era criança.
Você não é o que sonha,
não é o que as estrelas disseram
e não adianta tentar explicar o fato
de tudo ao seu redor dar errado
por causa da baboseira do zodíaco.
Você não é o que escuta
e nem o que bebe.
Você não é o sintético que te deixa louco
e com as ideias finalmente compreensíveis para si mesmo.
Você não é quem você chupa e come,
nem as piadas que conta para disfarçar o abismo,
nem as lamúrias que todos já cansaram de ouvir.
Você não é o que o padre balbuciou que era
anos atrás,
quando entrou
pela última vez numa igreja.
A hipocrisia que emanava daquele templo
e das ovelhas com queixos erguidos
te fez arder por dentro
e logo após a sua prima ser batizada e condenada ao inferno
por pecados que não cometeu,
você saiu apressado procurando um
boteco aberto às 8:30h da manhã de um domingo escroto.
Você não é o que aquele velho médico
trancafiado numa saleta branca/amarelada e fria
em pleno feriado te mandou tomar. Provavelmente ele te receitou
o que ele mesmo precisava engolir para continuar vivo e receitando naquela sala moribunda.
Você não é a decepção no olhar.
Você não é o que amou.
Você não é o que a traição violentou.
Você não é o que a solidão engoliu.
Você não é o que te matou.
Você é o que sobrou
depois de tudo isso.
Você sempre será o resto.