DESABAFO DE UM FUTURO MORIBUNDO

Seu eu pudesse agora lembrar do tempo

quando fazia grandes caminhadas,

quando ia até o banheiro sozinho pra fazer xixi,

quando ouvia bem,

quando escolhia e me servia a própria comida,

quando fazia conta de cabeça,

quando ganhava meu sustento com trabalho de escritor,

quando era dono do meu nariz,

quando podia me levantar sozinho da cama,

quando não sentia tanta solidão,

quando fazia a barba sozinha todas manhãs,

quando precisava de motivo pra me emocionar,

quando almoçava em família no domingo,

quando não só sentia dores pelo corpo,

quando podia controlar o que dizia e o que pensava,

quando andava de ônibus,

quando reconhecia alguém assim que via,

quando sabia as horas vendo o relógio de pulso a corda que curtia tanto,

quando podia escolher a roupa que iria usar,

quando enxergava bem de óculos,

quando tinha discernimento,

quando certas pessoas tinham prazer em conversar comigo,

quando curtia brincar com a minha cachorrinha Mel,

quando adorava tomar cerveja de vez em quando,

quando podia comprar e ler jornal,

quando tinha bom olfato,

quando não tinha enterrado tanta gente querida,

quando podia curtir meus netos,

quando podia dirigir,

quando conseguia ler em hebraico,

quando controlava o esfíncter,

quando não punham grades laterais na cama pra dormir,

quando tomava banho sozinho,

quando sentava na cabeceira da mesa,

quando dava conselho ao invés de só receber,

quando tinha lembranças do passado remoto e recente,

quando tinha planos para o futuro,

quando não estava cheio de rugas na cara,

quando não dava trabalho e nem despesa pra ninguém,

quando adorava viver,

quando me limpava sozinho depois de fazer cocô,

quando dormia bem e sonhava bem,

quando Deus não precisava se preocupar comigo,

quando não tinha que fazer exame atrás de exame,

quando não tinha que ver médico atrás de médico,

quando me exercitava na praça naqueles aparelhos,

quando era útil,

quando era produtivo,

quando calçava o tênis,

quando só queria a morte bem distante,

quando não tinha que tomar um monte de remédios que acabaram com meu estômago, paladar e apetite,

quando meus queridos sorriam e não choravam ao me encontrar,

quando era feliz e sabia bem disso.

Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 02/02/2020
Reeditado em 03/02/2020
Código do texto: T6856293
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