Involuntário
às vezes me pergunto intrigado
quem será esse que me olha no espelho
esse estranho, esse outro
cada vez mais acomodado no meu rosto
cada vez mais castanho nos meus olhos
cada vez mais branco nos meus cabelos
esse personagem que se abriga nos meus sonhos.
às vezes não entendo de que forma
fui transformado pelo que vivi;
no meio do turbilhão de instantes
depois de transcorrido tanto tempo
e depois de caminhos tantos...
depois do sol escaldante me abrir em talhos
e da noite escura me arrepiar os ossos
não reconheço o menino nas fotografias.
viajo pelo espaço dos meus versos
e quando leio o que escrevi
me assombro, capturado
como se fosse a primeira vez.
quantos eus atrás?
já então há anos luz
de tudo o que me destruiu
sem que eu sequer percebesse
que apesar dos golpes e das lágrimas
eu ainda estava de pé
e meus músculos me sustentavam
apesar do meu peito, que arfava.
eu, que existo involuntário
e escrevo por impulso
narrando meus acasos
como quem luta pela vida
e é levado por ela.
sem volta, feito água de cachoeira
carregando só umas palavras bambas
um ranger nos dentes, uma gana
uns olhos atentos, uma boca rebelde
e um senso, um faro, um tino
um instinto de sobrevivência
e nos punhos cerrados
minha poesia inútil e sangrenta.