Entre Vermes e Camélias

I

Hoje morro

Amanhã me enterram

E assim me fazem como se faz com todo homem da terra:

Esquálida matéria

a fenecer ordinariamente entre vermes e camélias.

Tal como a noite que se rompe!

Tal como a arte que se exprime!

Triste a ter de morrer assim

Sem ao menos ter sabido quem eu era

Vou procurar no silêncio destas horas tudo aquilo que ora fui

e que não era.

A vagar assim irremediavelmente para a estrada do nada

Recordo todo o meu passado escoado

E neste recordar-se sinto a soprar-se em mim algo

profuso

porém necessário.

O passado num passe escorre sobre os confusos corredores do meu presente

E na minha retina se aloja:

Sinto que o presente me escorre pelos olhos. Grave, contenho. Mas a luta é desigual.

A natureza e sua ferocidade me devoram numa espiral de loucura e sono.

“Áspero e amiúde, me calo...”

II

Ao porvir da morte espero... e luto! Desesperadamente luto

entre rotinas e tarefas diárias

entre laudos e arquivos clínicos

entre porres e turvos edifícios

entre amigos e públicos devaneios

Luto como a cidade desolada

Ante o massacre do inimigo

Ante o holocausto inevitável... e não obstante... desisto?

Se lutei, se bradei

Se no intimo dos sonhos fui grande, heróico, poeta,

Em vida, pois, não passei de uma trágica comédia:

Submisso, esporadicamente infante, funcionário, quieto.

Se em vida eu fosse ao menos metade do que fui

Por dentro, não seria acaso eu mais interessante?

Em versos quis cantar a vida e tudo que é fruto dela

Mas em vida cantei, porém, o absurdo e a miséria

De um coração alheio a ela.

III

E na lida da vida, perdi?

Mas foram tantas as alegrias!

Tantas a me sorrirem seu riso!

Tantas a me abrirem as portas, a convidar-me a entrar no rito,

dizendo-me: Entre!

E entrei:

e amores eu vivi

e amigos eu cantei

e amores vi parti

e logo outros eu ganhei

e entre dezembros e maios e fevereiros amei.

Crédulo no amanhã, acordei. E no papel desenhei nova camélia.

Empunhei no cume d’uma haste

Uma bandeira

E no povo me reconheci de tal maneira

Que noutra realidade me criei.

No deserto do meu quarto – horas que voam – aprendi a lidar com livros, naus,

verdadeiras embarcações.

Livros de História, Cervantes,

Lorca, Neruda, Vinicius

Mas eram tantos. Tantos, que a verdade abriu-se em facas.

E fui inseto, barata,

Fidalgo, boêmio da taverna

E nos livros me embriaguei como quem vara noite, e varei...

Se me perdi, se neles me encontrei: não sei!

Acaso a morte a de me soterrar a pergunta

Quando a chama desta vida me expirar?

“Áspero e amiúde... espero.”

IV

Chegam-se me horas em que todavia

A razão já não se prolonga sobre as coisas

Antes, sou eu quem se precipita sobre elas.

No espelho minhas mãos passeiam no meu rosto

E sinto nele os últimos suspiros da juventude

E sinto-o como se fosse pela última vez.

Corpo – que outrora a mim pertenceu. Vais,

Coisa vibrante, que mesmo em febre latejou,

Que gozou meu gozo, e dormiu meu sono

Que andou meu passo e a dormir tornou.

Ah! Como é absurdo sabê-lo não eu, corpo!

Como imaginá-lo agora, inevitavelmente morto

Inevitável matéria entre adornos e camélias

A inevitável propriedade privada de vermes?

V

E num dia qualquer, delimitado no tempo e no espaço

Dia em que a vertigem e a ferrugem é a realidade própria das coisas

E as coisas somos todos nós: homem, relógio e cidade

Onde engrenagem e parafusos se confundem –

corria eu, desesperado, a engolir asfaltos e publicidade

para o meu trabalho.

Chegaria atrasado?

Ah, Shakespeare se riria da minha aflição!

Stress? Horácio não imagina o que seja.

“Carpe Diam!” Ele me aconselharia... .

Mas o meu dia já não era meu - retrucaria - o meu dia era de Outro.

Como colher o dia que já não me pertencia?

Assim, corria eu, desesperado, a vomitar asfaltos e publicidade.

No instante eram tudo e todos a se perderem na espiral da eternidade

- trânsito entre rotinas, farmácia entre prostitutas, pedestres entre camelôs, meio-dia entre suores, angústia entre paletós, tédio entre sapatos, pressa entre semáforos, mendigo entre manchetes, antenas entre passarinhos,

flores entre cigarros

solidão entre apartamentos -

Quando dei de cara com um velhinho e sua muleta.

O mundo inteiro, Alemanha, Iraque, China, reconstruiu-se me na imagem daquele senhor e sua muleta.

Sim. Meus olhos enferrujados nunca se esqueceram daquela pálida figura.

Daquele senhor demasiadamente curvo, magro, a se equilibrar heroicamente em sua muleta, enquanto o mundo, na vertigem do momento, desmoronava.

A questão crucial reconstruiu-se me numa pergunta:

Poderiam, sozinhos, velho e muleta,

cruzar a imensa rua?

Poderiam chegar no outro lado, ilesos?

No instante era só um velho e sua muleta, desamparados

no louco turbilhão da cidade.

Que poderia eu, a passos largos, fazer? Cessar a marcha?

Submeter meu (alheio) horário?

Romper a engrenagem? Cuspir no capital?

Colher o meu dia?

Por que este ímpeto de heroísmo me saltara, para salvar aquele velhinho e sua muleta, assim, tão de repente?

Se mais cedo ou mais tarde ele morreria?

Sua muleta morreria, eu mesmo morreria,

os semáforos,

os pedestres,

as prostitutas,

os mendigos,

os pássaros,

meu patrão,

e tudo que comungamos:

angústia, tédio e medo

morreriam,

como se nada tivesse acontecido

como se tudo não passasse de um mero suspiro no meio da madrugada.

E o que farei pois? Farei da vida um vale de lágrimas?

O que importa é a salvação divina,

o céu, o paraíso, as virgens celestiais?

Ou meu heroísmo lançará suas ambições para além do velhinho e sua muleta – por um tijolo acima das coisas mundanas? Ao céu?

Arre! Que o céu vá para o inferno!

O que eu queria era tomá-lo no braço

Estender suas mãos no meu ombro

Fazê-lo me seu companheiro de ao menos um minuto

E quem saiba, porque não, sua segunda muleta?

Não obstante, passei-lhe passageiro, despercebido na correria da cidade.

VI

E que deixarei ao mundo como lembrança:

Senão os versos que serão das traças?

Senão o corpo que será das plantas?

Encerro estes versos na mesa de um bar,

enquanto se repetem na memória embriagada:

“versos que serão das traças...”.

corpo que será das plantas...”

E sorrio num momento de ligeira introspecção

enquanto o Ceará, dono do bar, me serve

uma Pedra Noventa, coisa de nobre gaulês.

O Ceará se queixa de umas dores de cabeça.

Deve ser pela baixa umidade... Coisas de Brasília.

Mas ele ao menos tem do que se queixar...

E eu me queixo de quê, da existência?

Dos versos ruins? Mas como, se a vida é bela?

Se a vida é bela e minha conclusão é patética?

Triplamente patética:

“A vida é bela!”

“A vida é bela!”

“A vida é bela!”

É bela! Apesar da dor de cabeça, do verso ruim, da cachaça barata,

da solidão em Brasília, Londres, Taguatinga e Marselha:

é bela!

É bela como a noite serena de Ceilândia, da grande São Paulo,

quando as luzes se apagam e meninos que mal chegam ao mundo

se vão como coisas esquecidas nas calçadas frias e remelentas da cidade.

Da cidade que parece devorá-los numa pressa violenta, como se estivesse ela com fome, e não eles, os meninos.

A vida é bela!

Embora haja câncer no coração do homem.

A vida é bela!

Apesar das fronteiras, das guerras santas,

apesar do terror, do preço da passagem.

A vida é bela!

Bela como os olhos da pessoa amada quando acorda.

É bela como Dalva, estrela que na vida jamais vi tão gorda.

VII

E assim, no limiar da morte que ora me esbato

Descubro que não morro de fato, como esquálida matéria,

Que não me enterram como se faz com todo homem da terra

-entre vermes e camélias-

mas que a cada verso que minhas mãos encerram

sobrevivo como um grito entalado,

rasgado, e pra sempre eternizado

na garganta daquilo que chamam: poema.

Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 08/10/2007
Reeditado em 16/07/2011
Código do texto: T685082