SOBRE VIDA OU QUALQUER COISA PARECIDA

Como é que se vive

Sabendo que, para que haja grandeza,

É preciso que saia de cena o entusiasmo?

E por ali caminha ele, do outro lado da rua,

Cabisbaixo e soturno, repreendido

Como o mágico que se envergonha do truque desastrado.

É como se a caixa se abrisse

E a atriz, desconcertada, ainda estivesse ali.

.

Sabendo que o sono pode amanhã se estender para além da previsão

E que a vida – essa que questionamos –

Não deixará registros dos minutos finais que antecederam o adormecer,

Como é que se vive?

Todos os nomes guardados na memória.

Todos os recortes de jornal.

Como é que se vive após a revelação de que nomes são apenas nomes

E que os papeis amarelados nunca passaram de meros recortes de jornal?

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(da janela eu vi o homem na esquina falando ao celular.

Ria-se como quem assimila uma piada.

Gesticulava como que para sublinhar as palavras

Completamente inaudíveis aos ouvidos meus.

Lembro de ver seus lábios articularem sílabas mudas

enquanto os meus balbuciavam um verso fatalista)

.

Como é que se vive

Sentindo um vento glacial cortar a espinha

Quando os termômetros de rua apontam trinta e quatro graus?

Depois da coluna triturada

Como é que se volta a caminhar?

.

Como carregar os olhos exauridos de enxergar?

Imagens, tantas imagens,

Que já não são imagens mais do que imagem qualquer.

Os ouvidos saturados de notas carregadas,

O tato que não busca sensibilidade,

O vinho tinto sobre um paladar metalizado.

Como é que se vive sabendo que tudo, de tanto,

Tornou-se tão pouco

E que a vida hoje é vício delinquente que já não satisfaz?

Cada noite atravessada em claro é uma primavera,

E sabemos – temos nota – de que toda primavera perdida

É irrecuperável.

Depois de tantas flores espalhadas pelo quarto,

Pisoteadas a ponto de o sumo das pétalas tingir o piso,

Será ainda possível viver?

.

“Então amanhã eu passo aí para te buscar”.

E pude finalmente ouvir algo do homem que fala ao celular.

Não há esperança.

É possível viver.

.

- o espetáculo da misantropia é estar, o lobo, debruçado sobre o parapeito da janela -

Danilo de Monte