Três poemas para Manoel de Barros

Em comemoração ao seu 102º aniversário de nascimento dia 19 de dezembro.

Com palavras se podem multiplicar os silêncios.

Manoel de Barros

Na palavra posso tudo,

crio e recrio poesia:

caracol tem dom de nuvem,

girassol quer vaga-lume,

e no olho da garça brota o dia.

No arrebol da palavra

nasce o silêncio

e a vitória-régia segue nua

rainha da noite

branca de lua.

No verso

rio e serra.

Na rima

a cigarra cala.

E no hálito do peixe

um ipê amarelo lambe a primavera.

Tudo é matéria de poesia.

Manoel de Barros

a palavra adoece o poeta

febril desrima

e jaz poesia

decompõe sua essência

descoisa

e desexplica a vida

pega outra palavra

estica entorta torce

na entrelinha descobre

a palavra-desserventia

Deixei uma ave me amanhecer.

Manoel de Barros

Manoel acordou cedo.

Foi até o portão

e pregou o letreiro

pintado a dedo:

Aceita-se entulho para o poema.

As pessoas do Branco vilarejo,

riam dele:

- Velho louco,

bebeu tantas palavras

que não dá conta do desassossego!

Manoel nem aí.

Sabia da entrelinha das coisas:

- Tudo é matéria para poesia

e cuidado onde pisa!

Era o que sempre dizia.

Chegava sorridente,

lá pelo meio-dia,

na bolsa de estopa suas relíquias:

Uma lata com gotas de sol,

Duas cascas de cigarra beijadas de orvalho,

Uma concha brilhando visgo e lesma

e muitas outras coisas passarinhais.

Assim Manoel seguia

seu sacerdócio ou profética sina

de arrancar de dentro do nada

a mais bela poesia.

Publicados na

Revista Barbante

Ano VII nº 29 de 31 de dezembro de 2019

páginas 168 até 171

ISSN 2238-1414