GRITO NEGRO

Valei-me Ogum guerreiro,

Iluminai esta escuridão

No porão de Navio Negreiro

Partiram pai, mãe, irmão

Pele arde, a alma pena presas no pelourinho do porto negreiro

Sol de verão à pino, espera comprador que pague seu valor

Examina a boca, manda virar o corpo confere se está inteiro

Queria levar, mas é magrinho preciso de um bom reprodutor

Macho dessa raça é viril e se levar dois cobro-lhe apenas mil

Moedas na mão, pregoeiro abre sorriso, anuncia os próximos lotes:

Preciosas prendas, perfeitas pra emprenhar, vejam que quadril

Predadores à espreita prontos pra provar seus dotes

Valei-me Iansã dos ventos

Levai ao céu nossas vozes

Soprai pra longe os sofrimentos

Afastai de nós os algozes

Triste a procura inútil pelo carinho de mãos amigas

Vida trancada em senzala, grossa corrente no pé

Madrugadas sofridas entoando estranhas cantigas

Lembrança dos antepassados para não perderem a fé

As noites são longas, escravos amontoados no chão

Cantoria se repete, persistente, cansativo estribilho

Serve para aplacar o banzo reforçar o ódio no coração

Esperança que resta, deixa como herança ao filho

Valei-me Oxóssi Caçador

Moleque seja seu protegido

Aquecei-o com seu calor

Nas lutas não saia ferido

Apanhar desde pequeno pra aprender a prender o choro

Trabalhar sem preguiça, o chibata vai lanhar o couro

Pode rasgar a pele, pele negra não serve para coser

Que vida é essa, apenas promessa o amor e prazer

Dias quentes e longos, resistem aos trancos e barrancos

Malungos abatidos de banzo, mandingas pra não perder a coragem

Na alma o ódio crescente, carne ansiando vingança aos brancos

Uma forma de luta, dengos e cafunés em inexorável mestiçagem

Valei-me grande Senhora

Olhai por seus filhos, Iemanjá,

Levai o sofrimento embora

Afastai dos males, Saravá!

Meninas pequenas impúberes sem defesa eram abusadas

Pelo dono da terra, amigos do dono, capitães do mato, o feitor

Rude rotina diária, a vida não para, ouve-se pelas madrugadas

Gritos das dores do parto, nas mãos da mucama a mistura de cor

Ao mundo os primeiros negrinhos sararás e branquinhas pixaim

Corria nas veias sangue de Luanda e Congo junto ao português

Sem romantismo na história, era vitória dos povos de Benin,

Dos Bantus de Angola, Nagôs, de Benguela, Daomés e Malês

Valei-me a justiça de Xangô

Digam os Ofós... despertem Ossaim

Muita Saúde ao povo Nagô

Todos juntos na lavagem do Bomfim

Tempo tira a lisura do rosto, cerca o olhar de rugas

Tambores rompem horizontes espalhando aos ares

Trilhas secretas dos cafundó, onde há refúgio nas fugas

Os caminhos de Kalunga, Marolim, Urubu e Palmares

A liberdade é conquista de poucos nas Cartas de Alforria

Princesa assina um documento contendo falsa abolição

Permanecem invisíveis correntes, nas lutas de cada dia

Negros, Pardos, Mulatos... parece não ter fim a escravidão

Valei-me entre outros tantos

Ganga Zumba... Zumbi...

Meia Légua....

Dragão do Mar de Aracati...

À benção aos que deram a vida nas lutas da raça

Valei-me almas quase santas

Menininha do Gantois...

Carolina e Clementina de Jesus...

Dandara... Lia de Itamaracá...

À benção... mulheres negras e seus gritos de alerta

Valei-me, mentores e entidades

Tia Ciata, Maria Firmina, Solano Trindade...

Um salve a Castro Alves

À benção...Poetas cheios de luz

Seus versos revelam cruéis verdades...

Denunciam o laço que aperta a mordaça

Abafando até hoje os gritos dos porões

Joga capoeira, dança jongo, com abadá da escola

Libertos e forros, silentes de medo nas vielas do morro

Passado de luta insiste ecoar no sangue quilombola

Engana a realidade da falsa liberdade, pedem socorro

Há muvuca, cabeça de negro a prêmio, pretexto não falta

De preconceito em preconceito, vaga distante a paz

Curam antigas feridas, surge uma nova e lhe assalta

Ameniza as mais doloridas em preces aos orixás

Valei-me Oxalá! Poderoso criador

Dai-me seus conselhos Nanã

Escutai nosso grito de clamor

Afastai mau olhado um balangandã

Valei-me todos sincréticos santos

Enviem mensagem... um sinal

A liberdade dos Nagôs e Bantos

Chegue antes do Juízo Final

Pedro Galuchi
Enviado por Pedro Galuchi em 20/11/2019
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