Espelhos

distraidamente, detenho-me

à frente de um largo espelho.

me encaro mudo, tateio

examino-me como um a forasteiro.

não consigo apreender meu corpo inteiro

em uma única vista; é preciso escolher

o que intento (ou aguento) ver

e ir, aos poucos, navegando.

na expressão dos olhos demoro-me, surpreso:

o momento do encontro consigo mesmo.

entre lembranças e marcas,

os olhos não envelhecem: vão acalmando.

no fundo das órbitas, algo muda

sem, contudo, desvanecer.

é a vida toda, que passa

deixando ruídos e cores inevitáveis.

os olhos brilhantes da infância,

de tudo espantosamente novo e grande,

vão dando lugar a um mundo inteiro

de prazeres e horrores lancinantes.

é possível traduzir um olhar?

sem palavras e sem códigos,

a mirada entre dois estrangeiros

pode expressar desejos certeiros.

mas a sós com meu duplo

não sei bem o que dizer:

me pego acanhado no meu íntimo –

sou por demais cúmplice do que vi.

como a força só se mostra na fraqueza

e a coragem só floresce no medo

também encarar o espelho exige bravura.

o espelho não é um reflexo objetivo,

o espelho não é um objeto pronto.

o espelho são olhos do lado de dentro.

pedro toscan
Enviado por pedro toscan em 16/09/2019
Reeditado em 16/09/2019
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