O SONHO DA VIDA

Eu quis tantos itens de uma prateleira infinita

Enchi o carrinho num corredor colorido ofuscante

Reservei espaço pra sessão de sonhos e fotos não-tiradas

Somei minha imaginação ao catálogo do estabelecimento

Fiz listas mentais enquanto fazia bolhas nos pés e calos nas mãos

Ninguém me acompanhava, foi um consumo solitário

E como girei entre os produtos, como corri pelas sessões...

E como chorei entre livros com páginas rasgadas e catálogos de brinquedos que jamais poderei ter

Quantas fotos que não registrei estavam expostas numa vitrine agressiva que me encarava com sarcasmo

Os flashes que poderiam ter iluminado momentos que nunca existiram...

Agora farão parte das miseráveis listas que me assombram como serpentes embaixo da cama

Que açoitam meu sono já carregado de imagens difusas sem um tracking pra deixá-las mais nítidas

E no fim das compras só sobrou frustração e delírio...

Tudo é turbilhão e fantasia rubra, tudo é carnaval e cicatrizes

Tudo remete aos sonhos e neles se mesclam, se fundem

Viraram um só e retorcem minhas vísceras como um espeto ao redor de brasas

Como aqueles sonhos que trazem melodias de carne rasgada e risadas histéricas em manhãs de ressaca

Lúcidos ou não, bifurcados ou retos

Alimentos de uma realidade mais onírica que os próprios...

Num loop sem fim, no famoso moto-contínuo

Gerações inteiras que passam por funis de culpa e redenção tardia

No meu espiral cinematográfico do subconsciente

Que cativa platéias decrépitas de um circo no qual eu sou o apresentador

Empunhando uma cartola sem coelhos e uma bengala de punhal

Onde os aplausos são inaudiveis e a platéia tem meu semblante

Sempre sério, cansado, veemente e lírico em parte...

Com o mesmo olhar de quem sonha mais do que o sonho

De quem acorda pra continuar vivendo

Implacável e bravamente

O sonho da vida.

(Remotamente inspirado na música homônima da magnânima Patti Smith)

Caio Braga
Enviado por Caio Braga em 12/08/2019
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