BILE NEGRA

Tenho acordado assustado, como quem sente que está atrasado para algo da maior importância, mas não lembra o quê.

Tenho procurado desculpas e argumentos, para as minhas faltas e para as dos outros, feito vista grossa aos pequenos pecados que machucam...

Tenho recorrido a vícios antigos, vestidos com roupas novas e bem passadas, procurado uma forma elegante de destruição.

Tenho invadido templos vazios em busca de ídolos que já se foram.

Tenho jogado conversa fora porque não vale a pena guardar...

Tenho coberto e lacrado espelhos, que insistem em me mostrar o cinismo que repudio... para que possa continuar, cinicamente, a repudiá-lo.

Tenho visto meus versos e idéias como plágios, expressos (de maneira melhor!) por tantos outros que vieram antes... tenho me entediado pela espera do novo e só o encontro quando já envelheceu.

Tenho andado me esgueirando por vielas escuras como quem se assume indigno por essência, baixado a cabeça para que nenhum olhar cruze com o meu e me descubra... e me revele ao mundo como o embuste que venho guardando em segredo de mim mesmo.

Pois há muito que venho escrevendo obras, dignas de um gênio, em línguas que não existem; pintado telas (não menos geniais!) com água e óleo incolor; escrito poesias que são metralhadoras de catarse, mas que nunca recordo de cor.

Tenho perdido o sono por conta de uma culpa que não conheço.

Tenho me assustado com estalos dos assoalhos de madeira, como quem faz o errado, ciente de que o está fazendo.

Tenho odiado o que está por perto e amado o que está longe... e depois, tenho chorado de saudades e sangrado teatralmente quando aquele que, outrora a meu lado, se afasta.

Tenho feito falsas e interesseiras penitências em público, apenas para poder me culpar ainda mais...

Tenho gasto meus últimos anos a lamentar pelo tempo perdido... me queixado da miopia do mundo enquanto tropeço em minha própria bagunça.

Tenho ensaiado e atuado, apaixonadamente, para uma platéia bocejante que perde a hora do aplauso.

Tenho andado pelas ruas do lugar em que nasci como um forasteiro, visto o antigo com estranheza e receio.

Tenho aguardado a hora de ser pego em flagrante, cometendo (sem saber) o maior dos delitos (que ainda não imagino qual).

Tenho pago diariamente parcelas de uma dívida que só faz crescer e que me cobra mais do que sou.

Tenho olhado para as estrelas com ares de saudades e iludido os ignorantes com pretensão messiânica.

Tenho procurado o fracasso com um misto de pesar e alegria, como o viciado se destrói na repetição.

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