DE ALCOVA, A OUSADIA

1. De cada um segundo seus desígnios, a cada um segundo o seu prazer e gozo. Estar no mundo é equilibrar-se.

2. Possuidor do vício da Poética e da compulsão pela conivência com o poema sou um condenado com alguma felicidade nos olhos.

3. Ah, amada! Nada como estar assim, furtivo como uma sombra entre sorrisos e o amor escoando vinho entre lençóis engomados.

4. De há muito sinto a mesma cena: soluço de sono e mar roçando a língua na praia. E a vontade de dormir com ela no movimento das ondas. Inexoravelmente.

5. A carruagem tem cavalos alados e monto o destino num catavento de açúcares. Espero a chave de teus pudores para que me craves a emoção.

6. O sol era uma escova tímida subindo e descendo sobre o ventre do vale. O grande púbis ficara úmido. Era imensamente azul o amanhã sob o novo céu. Começávamos a escrever memórias.

7. Penetra-me, sussura a voz da alcova. Arde a lareira na pele. Cospe, cospe mais, prenhez de fogo e braços! Labaredas dançam. Bocas são pontas de aço.

8. A amada constrói-se com um pouco de sal e chuva. E o corpo é um barco que perdeu a vela e o rumo. Tormentas.

9. Mãos: jeito jeitoso de amar. Corpo: jungido jogado, pluma de desejo. Peito pulsante, ritual ofegante. Cerveja, suor. Justo gemido. Nada ajustado neste ardor de amar.

10. Virgem. Sussurro de pardais quando a tarde morre. O ardil do estranho tange o ninho. Âncora dos sonhos de futuro.

11. Selvagens ginetes adejam alados no jogo da vida. Naquele minúsculo retiro, entre sombras e cortinas corpos nus fazem surdas revelações ao olfato.

12. Ao correr das esquinas desejei copular a felicidade, cochicha a indesejada sombra aos ouvidos moucos. Assim me fino – mofino – na moldura das palavras. Insólita costura no vazio das esperas. Esferas. Dói o calo de viver.

13. Enche o coração de desejos. Chegarei com fome. Confesso, sou antropofágico. Há algum mal em ser carne e mesa?

14. A paixão dá-me a precisa confidência: o canto tormentoso de sua possessa e estridente fala. A inquietude faz o poema e amanhece doce o dia – que é este o único festim.

15. Prefiro morrer a cada vez que o amor vem, porque ele me salva do de-vir a esmo. O dia seguinte guarda a flor. Que venha o que vier: o Absoluto a me amparar no que sou de criatura. Para além do nada, transcende o que eu sou.

16. O que seria de nós sem essa centelha a que os neurônios assistem e se regozijam? Ah, o corpo e seus insondáveis mistérios!

17. A Poesia é o lenho sobre o corpo necessitado de tatuagens. O poema é o coito não concedido. Abre-me o chacra em conchavo e me concede, ó dama irrevelada!

18. O espelho deleita o rijo à falta de. Motivos estremecem peito e torso. Dor condoída. Atinge o ápice e aplaca a dor do-ente. Ele é esganado: só come o que gosta.

19. Dói-me o corpo que em mim não pensa. E a dor exaurida no ventre varre tudo que antes parecia presença. Nem a poética sustenta. Abraça-a, sem falar nada.

20. Chegaste a tempo: quando a ausência ansiava em mim os seus estragos. O aberto voo da ágil mariposa: vórtice entre coxas.

21. O que fazer para além dos poemas gozosos, que nascem prematuros ao gesto gráfico?

22. Aquele que ama, mesmo não saiba, tem na garganta muda as vozes da ventania: a alma do desejo.

23. E fica decretada a libertação pura da vontade e dos riscos do querer. Só os fracos fogem deles. Fragilizam-se.

– Do livro inédito POESIA DE ALCOVA, 2017/19.

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