BRANCO E VERMELHO - CAMILO PESSANHA

Um dos mais fundos e pungentes e belos poemas que li na vida, sobre a dor: Camilo Pessanha, um dos grandes poetas portugueses...Quando estudava Poesia Portuguesa na USP tive que me debruçar horas e horas sobre este BRANCO E VERMELHO... Carlos Felipe Moisés, meu mestre e amigo de vida inteira, guiou-nos em tal empreitada.

BRANCO E VERMELHO

A dor, forte e imprevista,

Ferindo-me, imprevista,

De branca e de imprevista

Foi um deslumbramento,

Que me endoidou a vista,

Fez-me perder a vista,

Fez-me fugir a vista,

Num doce esvaimento.

Como um deserto imenso,

Branco deserto imenso,

Resplandecente e imenso,

Fez-se em redor de mim.

Todo o meu ser suspenso,

Não sinto já, não penso,

Pairo na luz, suspenso...

Que delícia sem fim!

Na inundação da luz

Banhando os céus a flux,

No êxtase da luz,

Vejo passar, desfila

(Seus pobres corpos nus

Que a distância reduz,

Amesquinha e reduz

No fundo da pupila)

Na areia imensa e plana,

Ao longe, a caravana

Sem fim, a caravana

Na linha do horizonte,

Da enorme dor humana,

Da insigne dor humana...

A inútil dor humana!

Marcha, curvada a fronte.

Até ao chão, curvados,

Exaustos e curvados,

Vão um a um, curvados,

Os seus magros perfis;

Escravos condenados,

No poente recortados,

Em negro recortados,

Magros, mesquinhos, vis.

A cada golpe tremem

Os que de medo tremem,

E as pálpebras me tremem

Quando o açoite vibra.

Estala! e apenas gemem,

Pavidamente gemem,

A cada golpe gemem,

Que os desequilibra.

Sob o açoite caem,

A cada golpe caem,

Erguem-se logo. Caem,

Soergue-os o terror...

Até que enfim desmaiem,

Por uma vez desmaiem!

Ei-los que enfim se esvaem

Vencida, enfim, a dor...

E ali fiquem serenos,

De costas e serenos...

Beije-os a luz, serenos,

Nas amplas frontes calmas

Ó céus claros e amenos,

Doces jardins amenos,

Onde se sofre menos,

Onde dormem as almas!

A dor, deserto imenso,

Branco deserto imenso,

Resplandecente e imenso,

Foi um deslumbramento.

Todo o meu ser suspenso,

Não sinto já, não penso,

Pairo na luz, suspenso

Num doce esvaimento.

Ó Morte, vem depressa,

Acorda, vem depressa,

Acode-me depressa,

Vem-me enxugar o suor,

Que o estertor começa.

É cumprir a promessa.

Já o sonho começa...

Tudo vermelho em flor...

Camilo Pessanha