TODOS NASCEM ANJOS
Esse ser humano, criatura sem par,
capaz de destroçar e abençoar com a mesma mão,
com a mesma alma.
Todos nascem iguais, envoltos numa placenta,
recebendo seus respiros de vida só
pelo cordão umbilical.
Todos nascem anjos, todos nascem frutos
de Deus, todos nascem imaturos, imberbes,
incapaz de dar um passo sequer.
Todos nascem sem saber discernir o certo do
errado. o justo do injusto, o melhor caminho
da cilada fatal.
Todos nascem sem conhecer a traição, a falsidade,
o fracasso, o medo, as faíscas do ódio,
o grito arrebatador da liberdade,
as lascas alvoroçadas da paixão.
Daí começam a desmembrar seu trajeto,
fazer suas escolhas, experimentar as faces
pouco solúveis do desdém.
Daí começam a dedilhar os vãos do desprezo,
as sombras arestadas da vingança,
os véus encardidos da solidão.
Daí, aquelas criaturas, originalmente
perfeitas nas engrenagens mais roucas,
originalmente belas nos rincões mais
endiabrados de sua alma,
cairão em si.
Vão descobrir que todo aquele encanto
encobria um bolor esquisito, atroz.
Vão ter que digerir, a duras penas,
um insosso legado que a humanidade
lhes impôs - o preço da vida.
Então só lhes restará abandonar sua
casca e pisar firme na construção da
própria história, enredo sem
ensaio, sem plateia, sem repeteco.
E assim, placidamente, vão tocar seu
barco até que venha a encalhar num
trêmulo, incrédulo e fugaz desfecho.
Corta a cena e desce o pano.
É o fim. Adeus.