O despetalar do narciso
Tive enorme medo
De enfrentar-te, nesses dias,
papel em branco.
A dor que ainda sinto
Parecia-me impossível a encarar:
Torná-la cousa, sabe?
Ver ela formar-se, em letras trêmulas
Como um borrão de tinta escuro:
Tudo isso faria da dor cousa real;
Teria de assumi-la, senti-la diferentemente:
Como real, como cousa real!
Palavras malditas criaram-na,
Ao vibrar, as cordas vocais,
Como um terremoto que coloca ao chão
Tudo que o homem ergueu,
Destruíram-me, fizeram-me escombros e cinzas.
Sei que resta um homem:
Um homem com resquícios de humanidade:
Desejos, olhos brilhantes e chama.
Quero encontrá-lo, preciso ascender
Dessas ferragens gélidas.
Por isso, clamo a ti, ó papel,
Senhor silencioso das amarguras,
Corro até ti, como o louco
Corre atrás do objeto de sua loucura.
Colocarei toda a dor a bailar,
Novamente, preciso enfrentá-la,
Cosê-las e assim viver:
Não viver sem ela; pois,agora,
Tornou-se rainha de minha existência
E se não a tiver, nem minha vida estará a salvo,
Já que ela me leva à falta que a me causa.
Perdi todo meu amor,
Fui cingido, como poderei caminhar ereto?
Sempre andarei cocho e arrastando-me!
A luz sacral foi ofuscada pela tormentosa
Nuvem negra que a tudo leva a escuridão.
Sou corpo, sou corpo: carne, tripa e ossos.
A alma enterrou-se em uma cova funda,
Não há esperança, não há saída nem caminho,
Apenas resta a realidade frívola.
Maldita seja a boca que emanou palavras néscias,
Maldita seja a palavra que causou dor,
Maldito seja eu seu algoz,
Maldito seja eu!
Retiro-me, pois já não te suporto,
Ó papel querido; fujo como um covarde,
Não como a presa que por instinto teme o predador,
Fujo; porque sou covarde,
Ainda procurarei tua tez ríspida,
Tuas margens esguias, tuas linhas de sofreguidão,
Serás para mim o que sou para ti:
Uma caatinga seca e tortuosa,
Um sertão seco e árido,
Que, no entanto, sempre sonha em florescer.