silêncio

o silêncio sereno do monge

imóvel no mosteiro da montanha

o silêncio ruidoso da alma inquieta

calada na insone solidão da madrugada

o silêncio imperfeito do estádio de futebol

no apressado minuto de silêncio

o silêncio fotografado no cartaz do hospital

a enfermeira com o indicador em riste

sobre os lábios que pedem silêncio

o silêncio da floresta

na presença do humano

o silêncio das águas do rio revolto

quando descansa no remanso

o silêncio da garça de olho amarelo

espreitando o peixe práteo distraído

o silêncio das espumas do refluxo do mar

espreguiçando após o estrondo da onda

o silêncio do espelho do oceano

depois da borrasca passar

o silêncio do olho do furacão

o conspurcado silêncio da avenida

na alvorada da quarta-feira de cinzas

o silêncio do sono do alcoólatra

na trégua entre os intermináveis fracassos

o silêncio da sonda singrando

o espaço para além de plutão

o silêncio incrédulo do cientista

ao detectar a intrigante partícula nuclear

a comportar-se tal galácticos buracos negros

o silêncio da família urbana emudecida

diante do borrão de estrelas do céu de lua nova do sertão

o silêncio largado da lactente adormecida

depois do choro, as sugadas estaladas, o arroto, o acalanto

o silêncio das cadeiras e da eletrola do bar

depois do último freguês se ausentar

o silêncio da artéria da metrópole

na manhã de primeiro de janeiro

o silêncio do menino pela primeira vez no templo

estarrecido diante do homem nu crucificado

o trêmulo silêncio de medo e pesar estampado

nos olhos do velho cão de estimação a ser sacrificado

o silêncio eloquente do operário braçal

esgotado ao fim do dia de trabalho

o silêncio dos volteios da fumarola do tabaco

do soldado entre as batalhas

o silêncio surdo dos tímpanos destroçados

após a estúpida explosão

o silêncio da perdiz imóvel e camuflada

acuada pelos cães de caça

o silêncio atento do pescador em alerta

sentindo que o peixe mordisca a isca

o silêncio dos picos nevados

antes da estrondosa torrente da avalanche

o silêncio do chumaço de algodão com a semente da paina

floco branco flutuando no imenso azul

o silêncio da bolha de sabão iridescente

e da desconcertada criança ao tocá-la com os dedos

o silêncio da velhice

depois da azáfama da vida

o silêncio das lápides do cemitério vazio

o silêncio da perda irreparável

do amor, do pai, o filho, o irmão

da honra, da fé, da terra natal em guerra

silêncio que não chega a ser quebrado

pela angústia a bater forte no peito

e pela lágrima que escorre muda

e silenciosa rebenta no chão

Publicado no livro "cio do século" (2011).