VIENA VIETNÃ

num dia quente de primavera em 2018 comecei a rabiscar estes escritos:

"as rubras negras americanas

desfilam no fashion week fora de época

carnaval fora de moda

carnaval sem carnaval

de ruivas achocolatadas e cabelos descrespados

em completo exílio de si.

não são brancas nem coloridas

não são brasileiras nem marcianas

não estão mudas mas silenciadas

não são feias mas embelezadas"

parei

desisti quando percebi que não estava escrevendo o que previ

não estava escrevendo o que tinha me motivado a escrever

desisti

desisti por não saber como escrever os versos que gostaria

que não saem da cabeça para vibrar na escrita

por só fazer versos que me saíram tortos

sem jeito, indesejados, fetos abortados

versos até vivos que agora apenas respiram

estranhos seres viventes que adquiriram vida e

aguardam cuidados vitais

eu, como mãe, reconheço meu filho

essa elaborada poesia que fiz

mesmo que inacabado, pois se reescreve, comigo

com as pessoas, com o mundo ou a sós

todo dia em todo lugar

desisti daquilo que resistiu

ponto. não final

dias depois, voltei ao texto, tentei remendá-lo:

"são duas (ou mais) américas

das rubras ruas

negras

de gente americana de madeixas negras

negras rubras

de unhas vermelhas

escarlate

e bocas carmim

a beleza negra de red hair

e outra boniteza, a de moa do katende, marielle, nina simone

são duas américas

ou mais

sempre contrárias, bélicas

de ruas escuras

onde o rubro sangue

corre na pele impermeável do asfalto

brota no tecido duro do cimento

verte no mar seco do sensacionalismo.

- são suas américas, bird

- são mais américas que isso, malcolm

- muito mais, martin

a que mais gosto? da bela da lente do olho da memória

no close de spike lee

´estrelando, elza soares conceição evaristo marcelo ariel

milton santos pixinguinha daiane dos santos´"

insisti

mesmo sabendo que continuava a não escrever o que gostaria

por saber que estava taquigrafando sensações anacronicamente

e que o filho que pari era outro, mas era filho e era outro

e era meu

e era eu

(desistir é uma prática de pessoas que criam; elas desistem para poder recriar o incognoscível)

(insistir é uma forma de falar da fórmula que ajuda a vender algo,

mesmo que desimportante)

por isso não resisti a esses verbos irregulares

e não resistindo, senti as dores dos que não sabem o que fazer

quando o fardo pesa, a dor vem

e o horizonte aparece feito de bifurcações

e das muitas oportunidades que a vida dá à pessoa

e a sensação pesada do tempo perdido.

besteira: tempo perdido não existe

tempo perdido é uma ficção

aquele que supostamente pode ter sido apreendido

(a menos que você esteja preso de suas memórias, sem saídas

para a direita ou esquerda, para frente ou atrás,

sem saídas para dentro)

na verdade, a vida - assim como a poesia - não pode

com a força persuasiva da falta de palavras

ou de sentidos

e nem a soma de todos os gestos

e nem os meios sorrisos

e nem a força de todos os afetos

nada, ninguém pode

se eu desistir

se eu insistir

se eu resistir

na verdade, a poesia pode

mas às vezes a vida fode antes

(verão de 2018)