CHÃO DA LITERATURA e outras canções tortas - Livro completo
1.
FLOR DE OURO
São necessárias nove luas cheias,
quase um ano inteiro
para emergir da água e beijar a luz.
Para nascer há que se quebrar a paz,
rasgar o véu, destruir um mundo.
O homem nasce do pó
e se torna carne e logo se arrasta.
Depois fica em pé e corre pela estrada
atrás da salvação ou da danação total.
Os deuses brincam conosco.
Da monotonia da eternidade
ditam seus versos tortos e cifrados
para profetas loucos e enfeitiçados
que as lavram em velhos pergaminhos.
São necessárias nove luas novas,
quase um ano inteiro no fogo,
para que o embrião possa nascer.
Antes tem de quebrar a casca,
rasgar o véu do mundo comum
e chegar a tranqüila idade sagrada.
Qual a mandinga, a reza, o mantra?
Onde está a alavanca, a magia secreta,
a perfeição exata que ensina a paz?
Onde encontrar a tranqüilidade máxima,
o céu, o nirvana, a iluminação espiritual?
O espírito que vaga pela humanidade
e que fala pela boca dos sábios,
dos certos e dos erráticos;
que encarna e reencarna na força das palavras,
ditas na Palestina, na Índia ou na velha China
e que ensina uma só doutrina, uma só mensagem:
As transformações vem todas do coração,
reside ali a lucidez extrema,
que apesar de certa e exata,
é também fluida, inteligente e lúcida.
Brota da carne que pulsa,
o ser original que vive em nós.
2.
LAO TSÉ
Velho militante da sabedoria,
tinha princípios e um filosofia,
preceitos primeiros do homem de bem:
guardar cortesia indistintamente
manter-se livre interiormente
não confiar em demasia em nada, em ninguém.
Sem diplomas, pompas e regalias
sabia que a vida não se insere em livros, mas na memória,
arquivo vivo coletivo
das glórias, lendas e da história humana,
essências das lidas da vida.
Consciência acesa que ilumina o futuro.
Aberto caminho no tempo
3
ME INTERESSA SIMPLICIDADE
Quase sempre me interessam verdades,
poesias e outras sonoridades,
matérias densas, vidas toscas.
As vezes me interessam superficialidades,
matéria rala,
mosca que pousa com os pés na superficialidade da água
e faz milagre como se fosse Jesus.
Por fim me interessa simplicidade, a base.
E me pego fazendo versinho de poeta
capturando pássaros e flores com palavras-grade.
Na ânsia de querer ser profundo, prendo na minha teia de versos:
homens do beco, andarilhos, prisioneiros, crianças dos faróis,
formigas, besouros, folhas soltas e pessoas comuns.
E fico bolinando palavras como quem conserta o mundo.
Demolindo cidades e grades, desencadeando revoltas,
revisitando heróis idos e revoluções remotas.
Por vezes me pego lúcido, apático, anônimo,
permanecendo quieto como estratégia de sobrevivência,
obedecendo déspotas e incompetências.
Em outros dias me vejo passo à frente, sozinho,
de personalidade enfática,
criando enredos, comandando a massa na praça, microfone, alarde.
Mas como sou avesso e contraditório, me escondo inativo.
Se for preciso pago o preço pra continuar anônimo,
sentado na calçada, vendo glórias alheias no outdoor da praça.
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4.
ANARCO
Quem sabe dos meus pés
são meus sapatos rotos
e minhas meias furadas.
Quem sabe o caminho
são minhas pernas cansadas
e a própria estrada.
Não ouço papo de aranha.
Ninguém indica o bom.
Quem sabe esconde pra si.
Ninguém fará por mim.
Quem tentou fracassou.
Quis voar com minhas asas.
Ninguém decide por todos.
Não delego a minha parte.
Erro sozinho e em paz.
Ninguém leva meu voto
pra soberano, mandatário.
Sou eu meu próprio rei.
Tenho dito e acredito:
Sou minha própria diretriz.
Pés do chão e deus no alto.
5. PALAVRA LIVRO
Lido com palavras todo dia.
Meu ofício: carpinteiro de idéias,
joalheiro de pedras raras.
Lapido e realço brilhos.
Lido com palavras de pontas
e não raro me firo
e desvairo em sangue,
mas sigo e insisto.
Lido com palavras brutas.
Palavra pedra.
Palavra gente.
Palavra peixe.
As vezes mergulho,
palavras que me fogem,
busco no fundo escuro
a palavra rio,
a palavra brio.
Ofício solitário.
Me desgasto,
mas me abasteço
na palavra vida,
na palavra trabalho.
Na palavra gente
me sustento.
Objetivo, me concentro
e prendo tudo
na palavra livro.
6.
SERIA ÁGUA
Se eu fosse algo seria água,
pra molhar a mata,
pra dar de beber,
pra favorecer a vida.
Se eu fosse bom seria rio,
pra correr vadio,
pra ser fértil,
pra beneficiar tudo à volta.
Seu eu fosse deus,
desceria chuva,
pra me doar inteiro,
pra fartar a todos.
Se eu fosse gente,
seguiria o rio, doaria vida,
desceria fundo,
beberia na fonte,
buscaria a paz.
7.
VIREI CHINÊS
Eu vou virar chinês,
só comer arroz,
ler Lao Tsé e Chuan Tzu
e por paradoxo
virar confucionista.
Vou sentar em lotus
e me tornar budista.
Adeus racionalismo,
estou ficando louco.
Quero só um pouco
de harmonia e silêncio.
Chega de cálculo e frieza,
quero a natureza,
o máximo de tranqüilidade.
Nada quero provar,
só quero estar bem
comigo e com o cosmo.
Andar de bicicleta
sem ser atleta.
Meditar na sombra
e ver a nuvem passar.
Vencer eu próprio,
refrear desejos e ímpetos.
Me conhecer e estar
como o espaço vazio
de uma casa,
útil como o vasilhame
para quem dele
quiser fazer bom uso.
Bem caminhar é não deixar rastos,
refrear desejos,
abrigar o simples e o natural,
reduzir egoísmo,
abrigar o bem sem negar
a existência do mal.
Chega de tanto pensar
e procurar a saída,
eu não vou correr atrás
de dinheiro, ele que me ache.
Não vou sacar a arma.
vou desafiar a mim mesmo.
Eu só quero me conhecer,
me superar.
Eu vou praticar
a inação e daí tirar a lição.
Chega de tensão, aflição,
televisão e celular.
Quero me desligar das ondas
magnéticas
e me deitar na rede,
me tratar de forma natural.
Quero a acupuntura,
a massagem oriental.
pra relaxar e me curar
do stress, internet,
trânsito e tevê.
Inexato eu vou me largar
Por aí.
Dividir as dívidas
e duvidar das dúvidas,
caminhar sem pressa de chegar.
Viver sem querer ir ao fim,
seguir pelo desvio,
pelo caminho estreito,
pelo fio da navalha .
Me despojar e viajar,
visitar a cachoeira,
entra na mata...
Eu vou deixar de ser
só racional.
Vou virar chinês,
me inteirar da filosofia
e da dialética oriental.
Vou beber da fonte
matar a sede...
8.
CANÇÕES DO CHÃOE OUTRAS LITERATURAS BARATAS
cato cacos de vidro
e pedras preciosas
no chão da literatura
cato cacos humanos
e pessoas sem risos
no chão da vida
cato lírios no asfalto
e sons de aquários
no ácido da cidade
canto canções cegas
de bocas banguelas
e gritos aflitos
faço literatura de feira
poética torta
sem eira nem beira
escrevo analfabeto
literatura barata
bárbara e esquálida
trago no peito
o som preto dos becos
a pele parda do índios
sou pouco, sou farto
recolho, reciclo e espalho
revolta e revôo de pássaro.
9.
Vivo de inventar situações e de simular a vida,
num recriar contínuo de tudo ao meu gosto e gesto,
Talvez me falte coragem para a verdade,
ou talvez me sobre música por dentro.
Inteiramente falso e real é o mundo que crio
E que escoro em palavras e sons.
Participo da conversa surda do mundo.
Jogo meus confetes por aqui e ali,
adentro carnavais alheios.
Me molho na água do rio que já passou.
Sou outro homem,
diferente do de ontem,
mas acordo cheio de sinais e marcas e estigmas.
Não sei se sou farto de sonhos e esperança
ou se anda entrando de fato na vida que penso sonhar.
Respiro este ar mais poluído que ontem,
sou um pouco mico de circo, mas não conto a ninguém.
Sou um oco de incertezas
querendo determinar caminhos,
impor metas, colher frutos.
Quem eu acredito que sou
é diferente daquele que se revela.
A cada ação novas situações requerem
a velha ciência de sempre.
Estar alerta não é uma possibilidade improvável.
Lançar o pára-quedas é sempre previdente.
Fico me definindo para esconder a essência
ou para revelar a escondida demência,
que no escuro se revela e quer a luz.
Saltar de banda,
Dançar o frevo e pular de lado.
10.
PRA LAVAR A CIDADE
Eu tenho água pra lavar a cidade
e muita mágoa pra fazer o enxágüe.
Tenho vento suficiente pra varrer o mundo,
sacudir as árvores e destelhar as casas .
Eu tenho dor, eu tenho calo, eu tenho o pé inchado
de tanto correr atrás de estrago pra adiantar o lado.
Eu faço samba, eu danço e canto sem ser o cantor.,
Eu cumpro a sina e descreio do destino. Sou desatino.
Eu quando quero chove e quando calo eu falo.
Eu ando no meio fio, eu teço a rede e pesco o peixe.
Eu faço o feixe e eu mesmo o quebro.
Eu me arreio e me cavalgo. Sou notívago e acordo cedo.
Eu colho o que não plantei e esqueço o que teci.
Assim vou levando o fardo, rompendo cerca.
Eu sou o arco e o alvo, da cidade a dor.
Do chão em que fui plantado parti.
Eu sou daqui mas não estou nem ai.
11.
ARQUIVO
Trago comigo versos antigos
e velhos amigos.
Gritos, risos e o peito partido.
Tenho no arquivo, guardados:
canções, poemas...
água para criar meu próprio rio.
Sigo traçando meu enredo.
Medo e degredo.
Vou pelo trilho da lua no brilho do olhar.
Rompo meu próprio casulo.
Desfaço a morada...
O ovo é só um pequeno ninho.
Enveredo pelo caminho.
Me reciclo. Recrio.
O barco que navego sou eu mesmo.
Rompo silêncio, madrugas.
Minha estrada
vai de encontro ao bom da vida.
Quem sou que não me alcanço?
Que peso carrego?
Séculos que me desfaço
para alçar vôo
e vou pela estrada.
Levo comigo versos antigos,
canções prontas,
palavras de ponta,
palavras-sementes
que espalho pelo caminho.
12.
CHÃO DA LITERATURA
Sou a alma desvairada
que reanima e recicla abandonos.
Sou o vale que recolhe águas barrentas,
seus cacos e restos
trazidos pela correnteza da vida.
No chão da literatura,
recolho tudo o que se rejeita:
vielas e becos, crianças sem pátria dos faróis,
pés descalços, sertão...
e nossos heróis derrotados:
Che Guevara, Conselheiro, Prestes, Lampião...
Aparo todas as sobras,
lustro com kaol
as palavras malditas,
dos poemas esquecidos,
dos livros que a crítica ignora,
que o mercado rejeita
e o intelectual perjura.
Sou o catador de ferro-velho
que retira vida do limbo,
do quase nada.
Sou do território dos excluídos,
periferia, marginalia, Brasilândia...
Canto histórias esquecidas,
sons quietos dos que foram calados.
São matérias-vida que recolho
no chão-abrigo dos indigentes,
dos asilados, migrantes,
dos loucos e suas mazelas.
Acolho ultrajes à arte imaculada,
às escolas e suas panelas literárias.
Exalto os músicos da noite
e os poetas de verso torto e pé quebrado.
Sou a palavra rejeitada dos bons poetas.
13.
DESVARIO
Tenho uma ânsia forte a me roer por dentro,
um furacão querendo esvair-se em lava,
fogo e fumaça,
a cobrir a velha terra devastada e seus cacos,
derrotas, lutas inglórias,
ressacas e sonhos não realizados.
Me queima a paixão pela arte
e como quem martela ferro em sua bigorna
eu choro em letras,
imagens e sentimentos que não se agüentam estanques.
Romper o dique que lave e leve a alma além,
numa revolução impossível, improvável,
sem sangue.
Mas toda renovação tem sangue e seiva derramados,
levando abaixo
floresta e jardins plantados,
ordens e castas estabelecidas,
curando e criando novas feridas.
Mas quero!
De dentro vem o grito,
só pelo ímpeto de ver romper o muro que me barra,
explodir em fogos de artifícios,
em corações despetalados,
em rosas deslumbrantes
brotando do solo seco da paixão perdida.
Há uma vontade de ver o céu se abrir
e romper-se os sete selos prometidos pelo profeta.
Ver chegar a carruagem e despencar a fúria divina.
Há um lado que cala, compactua.
Outro que grita:
Merecemos a revolta e o revôo de Deus sobre nossas cabeças
cortando laços e desvarios.
Um basta, um juízo, um norte, um vento forte.
Tenho tudo isto assim
em redemoinho contínuo querendo sair furacão por ai
devastando telhados,
arrebentando fios e tensões.
Há um oceano de espera,
uma água cristalina aprisionada,
uma ânsia que me assalta e inquieta.
O que me resta? Poeta.
Inundar a todos com estas imagens,
sons mudos e harmonias desritmadas.
Com a música desconexa que a cidade inspira
e o silêncio distante.
De perto tudo é gênese e fim.
14.
AREIA DA PRAIA
Estou farto de juntar idéias tensas,
trancá-las em rimas e formatos
e ver palavras outras, leves,
sem compromissos, omissas, a toa,
soltas ao vento...
Estou cansado de juntar alimento
para todo o ano
e deixar que a primavera e o verão
se percam em mar, sol e flores,
enquanto eu bato prego
e fecho trancas do meu silo.
Estou farto de querer ser voz e razão
e defender ideais,
como o faminto defende um velho pão.
Estou saindo de cena,
fechando pra balanço.
Hoje, estou seco, sem eco.
Estou farto de fome,
de escrever na areia da praia...
15.
TRIPAS E CORAÇÕES
Fiz meu verso com tripas e coração, tropeçando nos verbos e advérbios, comendo bola na pontuação, mas segui em frente contra a crítica, os desafetos e os donos da situação.
Fui rimando, assim, tudo em ão.
Sem saber se teria leitor, crítica,
palavra de consolo ou só desolação.
Fiz minha vida comprando a vista,
pagando caro, tomando leite com água,
arrancando do diabo o amassado pão,
mas segui em frente, na adversidade,
abri picada contra a acomodação
Fiz do meu enredo minha prosa
e da minha vida a poesia possível.
Lavrei terra, plantei suor e colhi sons
e palavra que por hora me enrosco,
tentando fazer versos certos,
poesia terra, chão. Poesia asfalto.
Colhi restos de palavras e rejeitos
de Whitman, Lorca e Drummond.
Da mesa farta recolhi migalhas,
palavras esquálidas, rejeitadas...
Nos becos e bocadas recolhi olhares
e bocas fartas de fome e desesperança.
Com o tempero da revolta e indignação
refiz tudo em versos toscos,
emendando rimas.
Fiz no chão a literatura possível -
poesia iletrada, capenga, pé quebrado -
poesia crua, nua, refratária em si.
Destinada a ser nada na vida.
16.
FRANCISCANO
Trago notícias várias
de jornais e da rua.
A cada noite, antes do sono,
ponho-as à mesa,
entre restos de comida e cascas de frutas.
Delicio-me,
entre um trago e outro,
comemoro erros e falhas alheias,
ideologias e outras mentiras dispersas.
Como quem conspira na calada da noite
apóio os errados por estarem certos também.
Rio, entredentes,
farto-me de orgulho próprio
e entre meus cacos e restos,
pobre como um franciscano,
repúdio a miséria e o excesso de possuir.
17.
ME DECLARO POETA
Apesar das adversidades
e das condições contrárias
me declaro poeta.
Por insistência.
Por necessidade
e por desvario.
À margem,
semi analfabeto.
Ora discreto, pacato,
ora panfletário.
Escárnio.
Sem dentes,
Sedento,
sem livro,
Fora das panelas literárias,
sem mídia, sem patrocínio.
Nem conheço Caetano,
nem Gil.
Mesmo assim me declaro poeta.
Apesar da idade,
das contrariedades,
das necessidades primárias
gritarem antes.
Deus me vale.
Estou nessa
e declaro à praça,
a quem possa
a quem queira ou não.
Me declaro Poeta.
18.ME REVELANDO
Não quero nada aprovar.
Provar a vida me basta.
Queria quando, queria muito
entender o que,
onde está o sentido de existir.
Não vou vencer,
não quero derrotar,
não é preciso,
não é exato,
ninguém precisa perder
para o outro ganhar.
Vou acordar e me doar ao dia.
Ser certo é bonito.
Tranqüilo é levantar cedo, ceder,
ser uno, coeso, inteiro.
É ótimo ser bom,
ter o dom da claridade.
Não vou conquistar o mundo,
que ele me espere com seus dragões,
que exploda vulcões,
que rompa terremoto,s
que solte seus leões,
um a cada manhã.
Não quero mais provar nada,
nem ser menos ou mais,
só deixar de ser 100% racional.
Que deus, se existe, baste em si.
Pra mim me basta
o sol, a chuva, o pão
e se não tiver
que se busque onde tiver estocado
e se mude tudo.
Não sou livro aberto,
estrada reta.
Torto, me busco e me alcanço na curva.
Para o ocidente me oriento,
senhor de si, não me conheço
e a cada dia me revelo.
Eu sou o que é e será
segundo após,
segundo penso.
Planto se chover.
Colho se der.
Meus pensamentos são nada,
são só ações adolescentes,
inconseqüentemente me exploro a exaustão.
Colocar um ponto final é duro,
mas preciso e necessário.
19.
POUCO CONHECIMENTO
Noto que Deus me deu a vontade
e a necessidade de contar histórias,
de traçar enredos e falar de desejos.
Me deu a palavra
e o desconhecido para desvendar.
Justifico assim o meu delírio
de ir além do que aprendi nos livros.
Vejo com clarividência
que onde nasce a luz nasce a alma
e o universo crepita, cintila,
criando vida na água.
A natureza procria na dança dos planetas,
o oceano balança, faz o contrapeso.
Na Terra tudo é único e se multiplica
e o silêncio só existe a distância,
de perto tudo são explosões nucleares,
mistério enquanto se desconhece.
Estrelas acendem brilhos no cosmos
e na terra o homem busca,
no infindo fragmento, a fonte atômica.
Insiste em produzir energia sem vida
contra meu desejo anticientífico, humano, animal,
de sobreviver ao hecatombe total.
O homem é só uma doença do planeta,
um vírus letal em guerra constante.
E eu um mero pensador sem instrução
sem revelação divina
a me imiscuir por caminhos
de onde já nem sei sair.
Sou bicho acuado no concreto,
na encruzilhada da vida, no meio de homens
e mortes tentando sobreviver.
Sou o cientista sem instrução,
alquimista virtual,
mesclando cores, odores e palavras,
trotando no cavalo louco do pensamento.
Sou como o vento balançando a mata,
derrubando ninhos,
provocando revoadas e debandes.
Mas logo me acalmo
e volto para o assento comum do mortais.
Já não quero viajar pelas sendas estreitas e frestas da realidade
Inventar um mundo é fácil;
o duro é desmanchar a rocha
e fazê-lo escorrer como lava de vulcão.
20.
“Meu filhos, ninguém escarnece da criação.
O grão de areia é quase nada,
mas parece uma estrela pequenina refletindo o sol de Deus...”
psicografado por Chico Xavier
POESIA
1.
Poesia é assim, quase nada.
Nasce da vontade e da contrariedade
da expressão e da supressão
Poesia é gesto,
ação sem medidas,
enquadramento da vida entre quatro paredes-palavras.
Poesia é singular,
pessoal,
coletiva,
popular.
2.
Jackson fez poesia com pandeiro,
Paulinho com a viola,
Cartola com a Mangueira,
Tom Jobim com harmonia,
Pelé com bola...
e o mundo conheceu o Brasil
negro, moderno, de ontem, de agora.
Nelson fez poesia com cavaquinho,
Tom Zé com ironia,
Noel e Martinho com a Vila Isabel,
João Gilberto, voz e o banquinho,
cantou Caymmy e a Bahia
e o mundo ouviu e bateu palma
pros sons que daqui vinha.
Adoniram fez paulista a poesia,
Drummont ecoou das gerais,
Gonzaga cantou o sertão,
Patativa tirou versos do chão,
Gullar, poeta audaz,
nos revelou o Maranhão
e o Brasil conheceu sua voz
cidade, mar e sertão
Manuel hasteou Bandeira
da poesia e da paixão.
Mário e Oswald’Andrade
botaram versos novos
no seio da hospitaleira cidade
e São Paulo se revelou
ponta de lança da modernidade.
26.08.99
22.
FALANDO DE DIREITOS
Vamos falar de direito!
Palavra que abre espaço
e corta arreios;
que dá voz, que dá vez,
clareia os becos.
e a tez negra da desesperança atroz.
Falar de direitos implica
em falar sobre coisas certas, retas,
em justiça e alegria,
em melhor viver.
Falar de direitos significa
poder bem respirar,
beber, comer e dormir em paz.
Ter liberdade de discordar, discutir
e ser igual perante a lei.
Direito é ter um canto,
um remanso
pra poder descansar;
ter a labuta certa e o salário justo.
Falar de diretos significa também
proteger o espoliado,
punir o injusto que toma-lhe o suor
e maltrata-lhe a alma.
É resgatar esperanças,
não ficar mudo,
expor o que pensa, o que sente
proteger a criança,
não excluir raças,
garantir a todos escola, saúde....
Falar de direitos é, enfim,
expor tantas coisas em falta.
23.
MEU BRASIL
Não me canso de dizer:
aqui é o meu lugar
Não me canso de falar
aqui eu quero ficar.
Não sei o que dizer,
mas aqui é onde me nutro,
onde tudo me é vital.
Meu sangue, meu fluxo
Miséria e luxo.
Brasil, raquítico e bravo
Depauperado, marginal
Meu.
24.
CANÇÃO DA PROSPERIDADE
Canto aqui senhoras e senhores
a canção da prosperidade
Para que o Brasil nesses versos
de norte a sul neles fale.
Não quero ser apenas panfletário
mas dizer o que me arde.
Tenho olhos e vejo:
Em nosso país falta felicidade.
No campo o povo clama terra
e acampa fora da cerca farpada.
Num êxodo de luta e garra
querem um ‘taco’ da pátria amada.
Dar terra a quem nela plante
é solução também para as cidades.
Pra acabar com êxodo e fome
fazendo dos país prosperidade.
Por isso vamos falar como quem canta.
Não importa cor, origem, idade...
Junte-se e cante
a canção da prosperidade.
25.
DÉCADA DE 70
A multidão foi atacada a cavalo e cassetete.
Um mulher caiu e foi espancada.
Dos prédios, uma multidão atônita aplaudia e vaiava.
Era S. Paulo, Praça da Sé.
Eu estava lá.
Era só um estudante achando que o Brasil tinha concerto.
Vieram bombas de gás e a igreja da Sé abriu sua porta,
rimbombaram-se tiros, gritos aflitos.
Eu era pouco mais que um criança e corria da polícia pelas ruas do Centro.
Escapei pela Conselheiro Furtado
em direção à Liberdade
com dois outros jovens como eu.
Fazíamos história com nossas pernas e bocas.
Dávamos basta à ditadura militar correndo dos cavalos.
Eu vi! Eu estava lá fazendo
Correndo
Escrevendo Direito
Querendo respeito...
26.
“Como é bom poder tocar um instrumento”
Caetano Veloso
BB KING
Quando roubaram minha guitarra
foi como se levassem minh’alma,
rasgassem minha pele,
cortassem minhas mãos.
Ela era amada como a namorada,
como aquela flor querida no jardim,
que me aliviava só de tê-la no olhar.
Se me sentia só, se estava só,
era ela quem eu tocava de leve.
Se estava feliz ou triste,
alegre com o mundo ou avesso a tudo,
ela estava sempre ali, companheira.
Antes de tê-la comprado, às duras penas,
em duas vezes, quase um mês de trabalho,
eu era a própria desilusão:
rancoroso e amedrontado com o mundo,
me escondia e não sabia traduzir a dor,
algo que me roía,
como quem perde uma pessoa querida
A minha guitarra me trouxe vida,
ajudou-me a tirar da angústia
livrou-me de vez do esquecimento.
Quando me roubaram a guitarra
eu fiquei de novo mudo,
roubaram meu mundo, minha alma.
Hoje eu tenho outra guitarra
e faço das minhas tristezas música
para alegrar a todos,
devolvo em ritmo o que sofri
e quem me vê sorrir
não sabe de onde vem a harmonia,
a suavidade e a consonância da música
E nela, na minha guitarra,
que me reconforto e choro por dentro.
Só ela me entende e traduz
em som as pedras que carreguei,
caminhos que trilhei
Inspirado em história de BB King
27.
NÃO SOMOS POVO
Se somos tristes é porque comemos manhãs de chuva
e quartas-feiras de cinza.
Se somos alegre é porque vomitamos carnavais
e frevos e maracatus e sambas e axés.
Se somos negros é porque bebemos áfricas
e dançamos mágoas, gritos e açoites.
Se somos índios é porque cuspimos liberdade,
abraçamos a mata e bichos e viramos onças.
Se somos brasileiros é porque nos enfiaram povos,
degredados, aventureiros em naus desesperadas.
Se somos da cidade é porque nos impuseram estrada,
nos expulsaram sertão, plantaram cercas secaram as águas.
Se ainda não somos povo é porque não conquistamos escola,
comida, terra, liberdade, igualdade, prosperidade, união.
VERSÃO 2
Sou brasileiro porque me enfiaram povos:
degredados, aventureiros
e naus desesperadas.
Sou índio porque vivi liberdade,
abracei mata, bichos, águas claras
e fui onça solta, sagaz.
Sou negro porque bebi áfricas,
dancei mágoas, gritos, açoites
e fiz do erro revoltas.
Sou brasileiro triste
porque comi manhãs de chuva
e quartas-feiras de cinzas.
Sou brasileiro alegre
porque vomitei carnavais
e frevos, maracatus, sambas e axés.
Sou urbano porque me empurram estrada
me expulsaram o sertão,
plantaram cercas, secaram águas.
Se ainda não sou povo
porque faltou escola
terra, igualdade, prosperidade, união.
28.
NO DESVIU
Paulo Piolho dançou bonito,
fizeram peneira do seu corpo,
estancando a fúria do moleque
crescido no morro,
herdeiro das desavenças.
Era chegado de todos
e logo conseguia abrigo
quando arrumava intriga.
Os barracos se abriam
quando a polícia o perseguia.
Ninguém sabe, ninguém viu.
Sua estima não era gratuita,
cresceu nos braços de todos
e a eles retribuía a graça,
até caminhão de coca-cola
desviou certa vez pra favela.
Deu dinheiro pra crisma, batizado
e adiantava o lado dos pretinhos
que queriam ir ao baile.
Quando tava bonito
distribuía bala doce,
fazia a pivetada feliz.
Fazia o que não conheceu,
Faltou-lhe amor paterno,
jogado desde cedo na vida
cresceu no desvio,
conheceu o inferno cedo,
catou caco, roubou na feira,
nas quebradas foi apresentado
ao diabo.
Não lastimou a vida,
foi a luta,
cresceu destemido, marcado
pelo mesmo destino
de tantos iguais.
No morro só dava ele,
a pivetada dava toque
quando pintava sujeira,
era feito Charles, o anjo torto
da música do Benjor,
mas seu dia já tava contado,
foi cercado, crivado de bala
por mais de 50 soldados.
Foi desta pra pior,
deixou herdeiros por todo lado,
pois tudo ali ainda é igual:
Falta instrução, atenção, trabalho.
A escola da rua tá montada,
sem teto mas com aula prática,
não tem jeito
é destino Brasil,
principalmente pr’aqueles como Piolho
que nasceu,
cresceu e morreu no desvio
29.
ORDEM DOS TEMPLÁRIOS
Para Renato Russo (in memoriam)
Sou da Ordem dos Templários,
quando o inferno habitava o porão da Igreja
queimando inimigos como hereges,
mulheres como bruxas
e cientistas como demônios.
Sou da Ordem dos Templários
e sobrevivi à saga intolerante.
Tenho séculos de história
e as marcas de tortura pelo corpo.
Sou pele, osso e resistência.
Estou hoje no tempo da ciência
e vejo ainda usurários no poder
e a Igreja em outro empenho,
expiando seus próprios pecados,
expelindo seu próprio veneno.
Caminho à margem das catedrais
e vejo santos nas calçadas
e todo dia Cristo crucificado
nessa outra época escura do futuro.
Vivo na idade da luz hipnótica que domina.
Caminho à margem do emprego
e a fábrica fechada me encara.
Vejo só engenhos de guerra
e seu poder destrutivo infindo,
subjugando todos os cantos do planeta.
Sou da Ordem dos Templários,
sobrevivente do escuro,
num mundo tecnocrático, atávico,
que muda velozmente, mas liga-se ao passado
emendando pontas despóticas.
Contradigo-me a cada segundo,
nego a consciência passada.
Corpo sal, espaço sideral, além túmulo, humos, vida.
Sou o que não sei o que sou.
Encaro a metamorfose como roupa cotidiana.
Sou da Ordem dos Templários.
Dois universos fundidos num só.
Corpo morto, horto reflorestado.
Moléstias da terra, tétricos fragmentos,
Pão sustento, alimento que falta.
Mais que templos imensos,
Pressinto: precisamos de planos
para construir catedrais íntimas
e reerguermo-nos íntegros
do caos e do inferno dessa nova idade média.
Tempo das megalópoles, de concretos armados,
almas desoladas e crianças desamadas.
Terceiros e Quartos mundos,
somos terra desolada, dominada.
Liberdade! Esta é a palavra adequada
30.
PALAVRA BRASIL
Quero a palavra Brasil
despida de todos os chavões,
Inserida no chão-seio.
A palavra Brasil Glauber Rocha,
poeta das imagens trêmulas e sinceras.
Quero a palavra Brasil
paubrasil, de Oswald de Andrade,
poeta das palavras poucas
do verso seco, cômico e mordaz.
Quero a palavra Brasil,
Palavralínguapátria de Caetano Veloso,
poeta das músicas dissonantes
e palavras chaves.
Quero a palavra Brasil,
sem rimas com céu anil,
povo varonil,
e sim Brasil de calos e suores
Quero descobrir o Brasil cinza
das vielas, seca e cercas.
Brasil real, raquítico e bravo,
marginal, depauperado.
Brasil amado, amargo, maltratado
31.
POBRE NÃO TEM CHÃO
Pobre não tem propriedade.
Tem portas e janelas,
tijolos e paredes.
Tem pés, tem mãos,
mas não tem chão.
Pobre tem estrada e enxada.
Tem filhos e mulher,
amigo e patrão.
Tem rádio e televisão.
Só não tem terra.
Pobre não tem chão.
Pobre planta arroz,
batata e feijão.
Colhe fruta, mas se frustra,
nada lhe pertence.
A terra não é sua.
O que planta não lhe sustenta.
Ele colhe, mas não junta.
Almoça, mas não janta.
Pobre tem pés, tem mãos.
Pobre só não tem chão.
Pobre acorda cedo.
Ele é forte, tem brio.
Tem pés, tem mãos, mas não tem chão.
Pobre não tem chão.
Pobre não tem chão.
Ele tem olhos, tem filhos
Ele sua muito.
Ele come pouco.
Ele trabalha a terra.
Ele é forte, é duro.
Ele luta.
Refuta a exploração.
Ele quer pão, plantar e colher.
Ele quer terra.
Almoçar e jantar.
Ele quer terra.
Ele quer chão.
Pobre quer terra.
Pobre quer pão.
32.
DI VERSOS E ALHEIOS
O inimigo ataca. Está atento e forte.
Lança e fere, trama e mata.
Divide os homens e recolhe o lucro,
o fruto da sua gana.
São tramas dos carapálidas
e suas mutretas.
Confira: tudo que respira conspira,
portanto, Torquato Neto ensina:
Vamos tentar de novo
não podemos ser reféns da morte,
viver rodeado de mortos.
A política canalha julga,
falseia, aponta, apronta, distorce,
engana e destrói,
está impregnada de morte.
Amarra o povo, o país, a nação
aos seus interesses vis,
avilta, distorce e junta mais capital.
É preciso navegar,
ir além dos limites, romper cercas,
derrubar tronos e castas
ir em frente,
além desse bosque de almas penadas.
Romper esse teto baixo de imposições seculares,
de preceitos e preconceitos.
Ah! Os preconceitos, sim,
temos que destruí-los todos
traze-los da caverna do ser à luz
É preciso ser lampião, corisco, conselheiro
e preciso estar vivo e tentando sempre,
não dar folga,
fincar a cunha em qualquer nesga de luz
acender a tocha e iluminar a cidade.
33.
QUE MEDO
Eu tenho medo
de não mais perder este medo
que pensava passageiro.
De me complicar
e não saber explicar
o que não entendi.
Tenho medo de ser feliz.
De desagradar o vizinho.
De fazer barulho.
De quebrar o silêncio das dez.
De ser embrulhado.
De gostar errado.
De brochar.
De trair e ser punido.
Do além.
De dar e não receber.
De fazer o mal,
mesmo sem querer.
De pisar no calo dos ricos.
De famintos.
De não ter o que comer.
De ladrões.
De roubar e não poder carregar.
De possuir
e não saber dividir.
De não saber perdoar.
De perder todos os sentidos.
De me sentir perdido.
Tenho medo de tornar eterno
o passageiro.
De ter que partir
para o estrangeiro.
Tenho medo de perder a razão
De me tornar lúcido,
em vão...
De discordar de tudo.
De concordar com a lei.
De ser fora da ordem.
De promover a desordem.
De tocar acordes dissonantes.
De sonhar em alto-falante.
Tenho medo de concordar
no momento da discórdia.
De dar corda.
De recolher a grana.
Da gana de quem nada tem.
De ser o único,
o último, o primeiro.
Tenho medo de,
ao invés de falar, calar.
De nadar contra corrente.
De boiar.
De morrer na praia.
De ser destaque, despontar.
De ninguém notar.
De ser gênio incompreendido.
De ser só mais um fodido
que nada consegue.
que não plantou a árvore,
não escreveu o livro.
Do filho não vingar.
Tenho medo das dívidas.
De assinar o cheque em branco.
De dividir
as dúvidas.
Das dádivas.
De Deus me castigar
e do diabo a quatro.
Eu tenho medo de
não mais perder este medo
que pensava passageiro.
De me complicar
e não saber explicar
o que não entendi.
34. RAP
Não há só pretos ou quase pretos
na periferia.
Há pobres em abundância
de todas as etnias,
de todas as cores e tons
nas favelas, vielas,
batucando latas, sampleando sons,
criando versos, fazendo rap.
Os pivetes,
os moleques forjam uma língua nova,
da necessidade cria-se nova ginga.
Nos fundos da cidade
a realidade dura exige
uma nova música que emerge.
Pra quem não tem da escola
só hip hop é literatura,
som-vida daquela moçada dura
que quer ouvir o que entende,
quer falar o que vê,
quer expressar o que sente,
quer botar pra fora o que pulsa.
Por isso só fala cantado
e canta como quem fala
e mistura suingues, fundindo almas,
negras almas urbanas,
de todas as cidades do mundo.
35.
REMOÇÃO
Vieram aqui cinco camburões,
150 homens armados
pra arrancar do chão quem já nada tinha.
E arrancaram, com casca e tudo,
um minúsculo sonho de moradia.
Botas e sabres puseram na rua
crianças, mulheres e seus pares
mesmo cheios de razão.
E tudo sob convincente eloqüente argumento,
incontestável razão da propriedade
e servidão.
“Que ganância meu deus - disse alguém -
num mundo que está pra ultimar".
36.
SEDE, FOME E ESCÁRNIO
Tudo o que eu tinha investi em vento
e saudade.
Esgotei lágrimas,
iludi-me com a luz da cidade.
A fome não tem morada
perambulo nela, sem teto.
O amanhã não é certo
só há o resto, a solidariedade de uns.
O silêncio da noite mente
esconde murmúrios, lamentos
e não fotografa por dentro.
Só o sonho é ilusão doce de paz,
um vento que remove montanhas,
sacode poeiras
e desmancha horrores.
É uma excursão da alma.
Mas o dia chega.
Cidade:
redemoinho de homens sem cara,
solo fértil das futilidades,
anseios infrutíferos,
espaço amplo que não cabe quem na vida desanda
ou quem nela chegou tarde.
Só sede, fome e escárnio é o que hoje me cabe.
37.
SOMOS
Somos olhos de incêndio.
Olhos de certeza.
Olhos vivos, luz do próprio brilho
procurando abrir pontos na escuridão.
Somos
peixes procurando frestas,
linhas podres na malha
pra desmanchar a trama.
Somos nós de um mesmo laço,
lados da mesma miséria,
escravos do mesmo senhor.
Somos povo de um mesmo brasil céu de anil,
- rima fácil e inútil
e vazio de Justiça.
Ignóbil país de séculos tortos,
povo roto,
de esperança que não se faz verdade.
38.TESES
A cidade cresce em muros e prédios,
subtraindo-se árvores e ares.
As casas encerram seus habitantes
em paredes e grades “protetoras”
e na escola o aluno aprende a lição:
A geometria restritiva
e a matemática da fome consentida.
A sociologia da rua continua precisa
e providencia teses vivas.
Nos baixos do viaduto
a madrugada fria ensina na pele
a metereologia que não falha.
A cidade cresce em diferenças
e desgraças se multiplicam.
A arquitetura das favelas
ensina a lição da sobrevivência.
Moleques da Febem e presidiários do Carandiru
destroem teses racistas
de que o negro é criminoso nato.
Ensinam lição que não se aprende
na faculdade dos nobres mandatários.
A cidade cresce em vielas e favelas.
Subtrai-se vidas em massacres e chacinas
Vidas que não importam.
e que não contam nas estatísticas essências.
39.
TOQUE DE RECOLHER
Há vida no planeta Terra.
Ordens, ondas, mares, marés,
células, bichos, matas e mortes.
Estranhas formas,
estranhos seres,
entre eles a feroz forma
de orgulhosa postura,
que a tudo retém, destrói.
Rói o solo, o sub-solo com unhas e máquinas,
dentes e garras.
Tudo o que lhe cai às mãos se transforma.
Vira grana.
Há destinos traçados,
blasfêmias lançadas,
pudores e horrores
entre os doutores desta terra.
Pratos e panças cheias.
Tantos com pouco,
rostos rotos, restos,
réstias de luz.
Há ganas, garras afiadas.
navalhas, armas pesadas
varrendo ruas.
Lâminas e gargantas com sede.
Feras presas.
Há domínios, delírios,
sistemas armados
e sonhos domados.
Há vigilantes e sirenes,
gritos na noite vadia.
Tiros, periferia, chacinas,
facínoras,
gangues, guetos. É guerra
na terra de ninguém.
Estar forte e atento é tempo
pra não sucumbir nesse veneno.
Toque de recolher.
Tempo de resistir.
40.
VOCÊ É UM MUNDO
Você não é só você
é também aquilo que vê,
aquilo que lê,
aquilo que obedece.
Você é vontade alheia.
Você é muito aquilo
que querem que seja.
Você é personagem
de um sonho de alguém.
Você é fruto
de uma árvore distinta.
Você é parte
de algo que não o satisfaz.
Você é peça que se troca
de um mundo domado.
Você é dominado pelo poder,
quase amordaçado
pela salário e compromissos.
Você só tem algo seu:
a vontade para romper tudo.
Você tem o livre arbítrio
de discordar e mudar tudo.
Você não é quase nada.
Você é um mundo.
41.A WALT WITHMAN
Vamos cantar a canção da prosperidade!
A felicidade não pode esperar,
o futuro é já, o momento é agora.
Os sem teto, sem abrigo, os sem nome.
Os que ficaram no chão do caminho
Levantam-se todos! É imperativo grita.r
Você que está ai atrás, venha à frente,
junte-se a nós. Vamos cantar
Para os conformistas a conformação
para os que gostam: submissão
Para os de espírito crítico arrisco dizer:
É isso irmãos, juntem seus gritos,
despertem, lutem por si mesmos.
Você que está ai, alheio e quieto,
se toque, junte-se ao coro e cante.
Está tudo muito certo, sonolento.
O que há? Será que só eu me inquieto.
Para quem só se cala me oferto
Lhe dou o clamor bárbaro, o orgulho,
um peito aflito, a garganta e o grito.
Vamos cantar em uníssono, num rito,
a felicidade, a canção da prosperidade.
Vamos falar de novas preposições
novas idéias, versos e novas canções
e que nelas as crianças aprendam cedo
a não esperar o futuro prometido,
querê-lo agora, sem medo, é um direito.
é brandir já a vontade de renovação.
Vamos, juntos, cantar a felicidade
para todos como nossa única razão
Que dê um passo a frente os de trás,
os que tiveram seus sonhos mais queridos
sufocados, atados a vontades alheias.
Um passo a frente os ceifados em vida,
aqueles que a cidade negou guarida,
Vamos cantar a canção da prosperidade.
A felicidade não pode esperar.
42.
IMPERFEIÇÕES
Nenhuma guerra é necessária.
É só fracasso, fiasco
das relações sociais.
É só desejo e gana
de almas vis assassinas.
Nenhum tirano é necessário.
É só fracasso da educação,
das relações paternais.
É só ódio e auto-suficiência
em almas belicistas.
Nenhuma ditadura é sã.
É só vil distorção
do conceito de poder.
É usurpação do bem comum
em proveito único.
Nenhuma riqueza é verdadeira.
É só transferência
do que é de todos.
É só maquinação, usurpação
do trabalho alheio.
Nenhuma miséria se justifica
é sempre escravidão.
subservência, podridão.
É domínio do forte
sobre o menos potente.
Nenhuma prisão é precisa.
É só fracasso, fiasco
do governo e sociedade.
É ausência de educação
Amor ao próximo e má divisão.
Nenhum crime é justo.
É só descontrole,
inveja e vingança
ausência de piedade.
Pura maldade humana.
43.
Não quero nada aprovar.
Provar a vida me basta.
Queria quando, queria muito
entender o que,
onde está o sentido de existir.
Não vou vencer,
não quero derrotar,
não é preciso,
não é exato,
ninguém precisa perder
para o outro ganhar.
Vou me doar ao dia.
Ser certo é bonito.
Tranqüilo.
Levantar cedo, ceder,
ser uno, coeso, inteiro.
É ótimo ser bom,
ter o dom da claridade.
Não vou conquistar o mundo,
que ele me espere com seus dragões,
que exploda vulcões,
que rompa terremotos,
que solte seus leões,
um a cada manhã.
Não quero nada provar,
ser menos ou mais,
deixar de ser 100% racional.
Que deus, se existe, baste em si.
Pra mim me basta
o sol, a chuva, o pão...
E se não tiver
que se busque onde tiver estocado
E se mude tudo.
Não sou livro aberto,
estrada reta.
Torto, me busco e me alcanço na curva.
Para o ocidente me oriento,
senhor de si não me conheço
e a cada dia me revelo.
Eu sou o que é e será
segundo após,
segundo penso.
Planto se chover.
Colho de der.
Meus pensamentos são nada,
são só ações adolescentes,
inconseqüentemente me exploro a exaustão.
Colocar um ponto final é duro,
mas é preciso e necessário.
44.
Estou sem som
Sansung.
Sem sangue,
Sem suingue.
Estou só, sem sim.
Sumido.
Assumidamente
sem sentido.
Estou sem cem,
sem centavo,
centimétricamente
miúdo.
Estou só na cidade
ácida,
cega, ébria,
molhada.
Estou sem
samba,
sem rumo,
sem rumba,
sem tango.
sem som.
Estou só.
Sóbrio
na cidade cega.
45.
Na vida sigo sem desígnios fortes.
Pisando firme, olhando à frente,
capturando luz e horizontes,
filtrando amarguras e auguras,
subtraindo desencontros e desencantos,
somatizando pássaros, flores, crianças,
multiplicando cantos, amigos,
dividindo dores, dívidas, dúvidas,
caminhando na sombra,
desviando das matilhas,
seguindo reto pelas ruas tortuosas,
buscando oásis na cidade asfalto,
voando alto, sonhando inquieto,
realizando, compondo, juntando brasa,
quentando o frio, criando filhos.
47.
Trai minha paciência
com os séculos passados,
arcados sobre si mesmos
e que negam os dias que rompem diferentes.
Trai minha paciência.
Não há espaço para novos dados no teclado aramaíco.
A mente do século está martirizada,
mortificada em vida
e martela inglórias e proselitismos idos.
Trai minha paciência.
Não me peça mais parcimônia.
Não consigo mais seguir reto.
Estou caminhando torto no fio da navalha.
Trai minha paciência.
Estou agora fora do contexto, à margem.
Chega de heróis derrotados,
mártires, esforços, forças jogadas fora -
enterrados vivos pelos retrógrados.
Meu peito clama vitórias, pódio e alegria.
Trai minha paciência
com os arquétipos todos de conduta e postura,
que somados fazem o passado vivo,
ressoando alto e falante,
botando presente tempos medievais.
Trai minha paciência
com o século que acaba
e a mensagem não chegou aos ouvidos moucos.
Procuras continuam de pé,
mas eu estou fora deste páreo, fora do trilho.
Saio do século com aviso prévio, antes do seu fim.
Trai minha paciência, cai no mundo.