“Tempos de Falsidades”
"Tempos de Falsidades"
“A mentira é o único privilégio do homem sobre todos os outros animais” (Dostoiévski)
A mentira é hermafrodita e entrou no cio.
Saiu vagueando pelo mundo desembestada.
Semeou ao vento com seu hedonismo oblíquo,
Inoculou silente e nua seus ovos vãos e ubíquos,
E descansou ao sopé da cruz na encruzilhada.
Conceberam-se todas as mentiras.
A tosca e a elaborada; a rude e a sutil;
A angustiada e a sorridente;
A reta e a sinuosa; a bela e a disforme;
A amena e a arestosa; a afetada e a de recato;
A incrédula e a pia; a loquaz e a silente,
A lépida e a imóvel; a vermelha e a não-vermelha,
A tecnológica e a artesanal.
E as Mentiras sem cor, dor, pundonor e honor.
Cuidado ao cruzar as esquinas obnubiladas
E ao enveredar nas praças mais iluminadas.
Mentiras envenenarão espaços e minutos,
Pulverizando a paz até que não reste nada.
Na pintura medieval, a mentira desnudou a verdade,
Que se lançou enrubescida no Poço da Misericórdia.
Na tragédia do Hoje, a mentira afogou a verdade.
E lançou o corpo lancinado nos desvãos da retórica.
O tempo mesmo foi vestido com as roupas da mentira,
Como a beleza fugidia que ameaça os beócios,
Como os cães novos que aprendem truques velhos,
Como as palavras fortes que animam o mesmo ócio,
Como a esperança vã que anima o corpo inerte,
Como a finitude da força que de eterna se reveste.
Um dia, após voltarmos resolutos à Caverna de Platão,
Descobriremos incrédulos porque a luz é tão odiada:
De sua verve áurea ver-se-ão as rugas da mentira,
E de sua crosta límpida ressurgirá o resplendor do Chão.
Mas, não regressarão os alvos da sordidez das imposturas.
Como as vítimas das bombas em Hiroshima e Nagasaki:
Liquefazer-se-ão até na réstia de sua palidez.
Será proibido repetir seus nomes
E não deixarão tocar seus corpos em flacidez,
E fortes gritos reagirão a estas verdades insepultas.
Um dia, do cio da impostura, ver-se-á a realidade.
E nesse paradoxo atravessar-se-á a era da inverdade,
Pois virá da própria farsa a finitude da tragicidade.
Maurício Muriack de Fernandes e Peixoto, 23 de novembro de 2018