Mágoa que não deságua
A mágoa é dor que não deságua nem debanda.
Fica incrustada na alma feito praga maldita,
sem quer arredar pé de jeito nenhum.
A mágoa sangra de enxurrada, de manada, de penca,
ensurdecendo os ossos com ladainha insana,
infernizando a vida sem dó, nem perdão, nem trégua.
A mágoa descarrilha os guizos da paz,
descabela os sonhos, os arremates, as juntas,
faz a gente sofrer tanto que Deus fica com pena.
A mágoa um dia se olha no espelho e se sacode,
percebe seus tombos, seus desafinos, suas feridas,
entende seus rasgos, suas rebarbas, seus gritos,
então fica com vontade de chorar até morrer.
Nessa hora suas garras desamotinam,
nessa hora seu cheiro demoníaco acalma,
nessa hora seu passo aflito amansa.
Então ela pega seus trapos e diz fui
esquece de despedir, de pagar suas contas, de tudo,
e some num rastro fugido, assustado, remido,
não deixando nenhum gole, nenhum fiapo,
nenhum troco que seja.
Fica daí absolvida de si mesma,
fica daí absolvida por todas suas asas,
fica daí só fuligem, só sobra vazia,
fica daí um nada finalmente calado pra sempre.