Espreguiças da alma
Tenho memória curta, um tanto destrambelhada,
pra alguns ritos que encenei,
pra alguns chãos em que me untei.
pra algumas gentes que me entrelacei.
Se tento sacudir as lembranças,
forçando a cabeça a evocar certas imagens,
acabo num grande vazio, surdo e seco,
que nada mais respira, nada mas valida.
Talvez essas coisas idas, fincadas lá longe,
ainda fagulhem suas rebarbas doídas,
ainda tragam ventos cruéis,
ainda me façam atracar em choros que rasgaram sem dó.
Talvez esses céus bizarros, ranzinzas,
que um dia me fartaram de luz, de cor, de versos,
que um dia foram meu banquete predileto,
agora viraram de avesso e coalharam de vez,
como coalham certos sonhos, certos, guizos, certa voz.
Então fantasiado de poeta meio louco, meio travesso,
visto essa pesada armadura pra evitar sangrar do nada,
deixando esses passos trancafiados na masmorra do silêncio,
amordaçados no seu fel insaciável,
agarrados à sua raiz sombria,
entrincheirados nos confins do seu tempo.
Pode ser que um dia esses ossos renasçam,
pra escorrer de mim novos suores, novas vestes,
velhos gostos em que me lambuzei até trincar.
Então não poderei mais fugir desse útero divino,
e faça estrear um enfrentamento derradeiro,
daquilo que outrora foi meu dono e senhor.
E que agora, um tanto morto, um tanto ermitão,
mal consegue fazer meu sangue prosseguir,
mal consegue fazer meu coração berrar,
mal consegue fazer minha alma se espreguiçar.