Inventário de Cicatrizes

Os Primeiros Tempos da Tortura

Não era mole aqueles dias

de percorrer de capuz

a distância da cela

à câmara de tortura

e nela ser capaz de dar urros

tão feios como nunca ouvi.

Havia dias que as piruetas no pau-de-arara

pareciam rídiculas e humilhantes

e nus, ainda éramos capazes de corar

ante as piadas sádicas dos carrascos.

Havia dias em que todas as perspectivas

eram prá lá de negras

e todas as expectativas

se resumiam à esperança algo cética

de não tomar porradas nem choques elétricos.

Havia outros momentos

em que as horas se consumiam

à espera do ferrolho da porta que conduzia

às mãos dos especialistas

em nossa agonia.

Houve ainda períodos

em que a única preocupação possível

era ter papel higiênico

comer alguma coisa com algum talher

saber o nome do carcereiro de dia

ficar na expectativa da primeira visita

o que valia como um aval da vida

um carimbo de sobrevivente

e um status de prisioneiro político.

Depois a situação foi melhorando

e foi possível até sofrer

ter angústia, ler

amar, ter ciúmes

e todas essas outras bobagens amenas

que aí fora reputamos

como experiências cruciais.

***

Alex Polari transformou sua tortura em poesia, mas sabemos que essa dor não cicatriza.

Alex Polari
Enviado por Serpente Angel em 25/10/2018
Reeditado em 25/10/2018
Código do texto: T6485613
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