O porão de Deus
Guardo dentro de mim certo porão
que poucas vezes visito, limpo ou arejo.
Um local meio estranho, com cheiros peculiares,
que só eu sei o caminho pra chegar.
Por vezes é pra lá que vou quando a coisa aperta,
quando o tempo fecha, quando o ar fica azedo.
Quando isso acontece
o coração deixa de convulsionar, o sangue desiste de só empedrar,
a razão fica menos aborrecida.
É nele que guardo certos tesouros
que não divido com ninguém.
São restos de paixões que bagunçaram meu chão,
sobras de ódios que esfaquearam meu ar,
tecos de sonhos que não romperam sua casca pra nascer.
Nesse porão mal ajambrado e desleixado,
de paredes encardidas pelo voar do tempo,
levo alguns encantos ainda na primeira infância,
esperando sua deixa pra cair no mundo.
Também é lá que escondo certos medos raivosos, cruéis,
que deixo estrear no meu palco da vida,
muitas vezes com a plateia vazia.
Esses medos famintos,
já foram inofensivos e desarmados grãos de areia,
já se fizeram passar por dádivas raras,
já se disseram inócuos, moucos e mancos.
E que hoje, maduros e resolutos,
passam rasteira em certos pensamentos,
embriagam certos planos, certas rotinas, certos porens,
fazendo coalhar alguns passos que pareciam tão felizes. E eram mesmo.
Descobri recentemente que esse porão tem um inquilino,
aliás sempre teve, só eu que não sabia,
ou se sabia, me fazia de besta e não dava bola.
É lá que Deus se resguarda quando o tempo magoa,
quando os homens, ingratos, viram as costas,
quando os bichos, injustos, só fazem ferir e desprezar,
quando as plantas, incautas, desandam a só fazer chorar.
É no meu porão que Deus descansa e esquece suas mazelas,
seus infortúnios, suas câimbras.
É nele que o Criador se posta num canto, quieto e desarmado,
mergulhado só nos seus devaneios,
inundado de robusta solidão.
Só assim consegue reorganizar seus ossos, veias e colocar a alma em ordem.
Até que, redimido, volta ao batente,
pra sua jornada que nunca cessa de abençoar.