Ser tão
Apaguem as luzes:
Celulares, computadores e televisores;
Os seus feixes contínuos intoxicam-me.
Agora, em nada interessam aos homens os róseos dedos de Aurora.
Cada adolescente porta seu sol e seu deus.
Como um verme, faminto de homem,
As máquinas destroem nossas deusas.
Continuamos a sorrir com fones áureos
Incrustados em cavidades aurículas.
Nem o vinho os deixa menos ébrios,
Nem as drogas os tiram do torpor.
Sigo por um túnel lúgubre e escuro,
Aquilombei-me longe de tudo isso.
Busquei por campos selvagens e casarões de outrora: aqueles com varanda e rede.
Esses palácios, construí-os em minha memória,
Com terra pouca e bem perto do cafundó.
Ali, todos eram livres, todos eram senhores:
Senhores de si.
Não havia alegria, para não fomentar a dor;
Adiantei-me, bani o amor para acabar com as guerras.
Tudo era vazio: apenas o ranger da rede,
Presa a paredes ocas e secas,
Enchia a tarde com sua delicada seresta.
O nada era tudo, o vazio ocupava-me,
Sentia-me pleno, cheio e completo.
Marejando, eu escorria pelo dia,
A noite sombria chega, eu levanto-me do meu jazigo;
Corro descalço pela mata selvagem;
Enterro os dedos nus no barro macio:
Enfiei-os mais fundo que podia,
Deleitava-me com a terra abraçando-me.
Fui animal, herói, pervertido e intelectual:
Eu era o nada e o nada foi tudo.
Perdido no oceânico brejo, encontrava-me.
Desfeito de tudo; sem nada ter; atinge o Deus,
Este me abraçou e beijou-me com os lábios gelados.
E assim me disse:
- Torto, torto, tu és o filho gauche de um tempo resplandecente.
-Não te esquecestes que eles te mataram? indaguei, e que eu trouxeste-te de volta?
Criador e criatura perscrutavam-se.
Nada podiam dizer um ao outro,
A carne voltava a ser verbo mudo, engasgado,
E o verbo esfacelou-se sob o céu sem estrelas:
Completando seu destino.
Ambos se deitaram lado a lado,
A terra ficava, pouco a pouco, seca, sulcada e maltrapilha.
O branco dos ossos começa a despontar nas redondezas.
Os seixos rolavam por cima de nós,
Languidamente, a terra engolia-nos:
As narinas entupidas já não ventilam os pulmões;
O peito não mais ecoa, está soterrado.
Ali morremos: Eu e o Deus
Em respectivos suspiros assemânticos.
Sobre mim, nasceu a alva camélia;
Sobre ele o triste cravo.